Pluto enfatiza a sensibilidade de robôs para tratar de questões humanas complexas
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Pluto é uma série de anime baseada no mangá de mesmo nome de Naoki Urasawa. O mangá de Urasawa foi inspirado no arco The Greatest Robot on Earth, de Astro Boy (Osamu Tezuka), e mostra um detetive chamado Gesicht tentando solucionar uma série de mortes envolvendo alguns dos robôs mais poderosos do mundo e seus aliados humanos.
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A FIDELIDADE AO MANGÁ
Pluto é uma série que segue o mesmo método de Monster (2004). Ela constrói uma estrutura complexa e impõe uma alternância entre personagens e situações que pode beirar o confuso, mas no fim das contas o apelo está em aspectos bem básicos e essenciais da sua premissa.
O fato do mangá ser inspirado em um arco de Astro Boy também enfatiza essa busca por apelos universais e confrontos de aspecto clássico. Nos episódios finais, principalmente, o apelo emocional mais tradicional se faz bem presente.
Como dessa vez eu li o mangá antes, foi possível perceber como toda a construção da série é bem dependente do rigor dos painéis de Urasawa.
Provavelmente o fato de Urasawa ser tão rígido nas adaptações de suas obras vem da consciência de que o fluxo da narrativa e as sutilezas das falas e gestos dos personagens dependem da sua decupagem objetiva para fluir do modo mais claro possível.
A abordagem visual de Urasawa me remete um pouco a um cineasta como Christian Petzold. Principalmente pela forma que o mangaká propõe situações narrativas complexas e que soam muito contemporâneas pela sua fragmentação e desconstrução de certos aspectos, mas que tira o seu valor final de uma abordagem estética clássica.
Mesmo que chegue um momento em que o leitor do mangá comece a confundir os personagens ou se esqueça de aspectos específicos do plot, existe sempre um certo apelo emocional mais convencional na construção das imagens que nos puxa para a narrativa.
A fidelidade ao mangá, um formato que geralmente possui capítulos curtos, também cria uma relação interessante na série entre eventos que podem soar desconexos, mas que concebem sensações específicas justamente por estarem intercalados de modo arbitrário.
É claro que o anime poderia ir para outro caminho e até entendo que possa ser frustrante para algumas pessoas ver algo que, em um primeiro momento, pode soar apenas como uma cópia do mangá.
Porém, além da animação possuir sim traços autorais na execução de certos detalhes das cenas, o estilo cinematográfico de Urasawa, querendo ou não, traz uma boa unidade para a série.
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TRAÇOS AUTORAIS DA ADAPTAÇÃO
A animação possui um aspecto autoral essencial no sentido de que ela é responsável pela expressividade dramática dos personagens. Como muita coisa da premissa narrativa de Pluto depende de aspectos mais sutis de entonações, gestos, ações particulares e outros pormenores por parte dos humanos e robôs, a animação dá vida, ao seu modo, a toda essa minuciosidade.
Nesse sentido, tanto aspectos do ritmo da montagem e da luz da fotografia, estabelecidos pelos diretores dos episódios, são essenciais. Os clímax e as cenas de ação também são muito bem animadas no sentido de integrarem um aspecto orgânico e realista da proposta de Urasawa com um aspecto épico da animação.
A textura do CGI de alguns desses momentos épicos (como as explosões) vai, infelizmente, contra uma caracterização orgânica dos personagens, já que possui uma aparência relativamente fake, mas não é nada que afeta tanto assim o impacto final de tudo.
No caso dessa obra, especificamente, a importância da expressividade dramática que a animação dá aos personagens é ainda maior porque, querendo ou não, é ela que humaniza os robôs.
No mangá, essa humanização é muito bem trabalhada, mas quando a animação traz essa percepção de movimento e ritmo, essa ambiguidade é potencializada.
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REFLEXÕES SOBRE O TEMA
Em relação ao tema de Pluto, uma das coisas mais interessantes dessa premissa é que, apesar do foco central ser a questão da humanização dos robôs, a série consegue refletir sobre questões muito humanas — como paternidade, amizade e definições morais — usando a complexidade e a sensibilidade dessas máquinas.
O que gera a crise de Gesicht, o protagonista investigador, é muito mais o apego dele a uma criança e a uma resposta instintiva de paternidade do que qualquer coisa.
É como se o cérebro eletrônico dos robôs, a partir de uma evolução tecnológica, ficasse tão complexo e misterioso que chega ao ponto de responder a um instinto sagrado ou de seguir uma ordem natural e instintiva do homem, como a necessidade de ter um filho.
O “erro” de Gesicht, aquele que o fez mais humano e subverteu a sua conduta como robô, foi começar a pensar nele e na esposa como uma família nuclear. Além disso, ele passa a encarar o mundo de modo menos materialista e intui uma conduta moral de amor ao próximo como uma espécie de mandamento que, agora, deve seguir.
A personagem de Uran talvez seja quem melhor expressa isso abertamente. Todos os outros personagens, inclusive Atom, precisam reprimir esse instinto, precisam responder a um código imposto antes de qualquer coisa, mas Uran demonstra esse amor e preocupação ao próximo de modo espontâneo.
O fato dela ser uma criança torna as suas atitudes ainda mais sinceras. Não existe qualquer vaidade nas suas ações, mas apenas uma necessidade de ajudar e uma capacidade de empatia que nem ela consegue controlar.
Outro tema que também parece se repetir, se pensarmos em Monster (2004), é a abordagem ambígua da obra com uma possível força sobrenatural.
Até Pluto ser identificado, ele é colocado quase que como um demônio, uma espécie de mau absoluto que é um fantasma e uma máquina ao mesmo tempo. O que, por sua vez, remete muito ao arquétipo de Johan Liebert nessa invulnerabilidade e relação absoluta com o mal que sugere um poder sobrenatural que nunca fica claro.
Na medida que a trama é desenvolvida, isso é tratado como um mal humano, já que são os humanos que começam guerras e os robôs apenas respondem a isso. Ou seja, é a partir do contato com essa maldade humana que os cérebros eletrônicos atingem uma ideia de mal.
A grande questão da série, nesse ponto, é que essa evolução tecnológica chegaria a um ponto em que se transformaria em uma ligação com uma dimensão sobrenatural que pode ir tanto para o sagrado como para o profano.
O possível robô-demônio seria o profano e o sagrado atuaria tanto a partir dessa relação com a paternidade e maternidade (além do Gesicht, Brando vai se relacionar com esse sentimento), ou a partir da bondade absoluta de Uran e, até certa medida, do próprio Atom.
Atom e Uran representam, talvez, o que o Dr Tenma representava em Monster (2004). Como não são imperfeitos como os humanos — não são pecadores já que não tem consciência plena para agir com maldade — e como seus cérebros eletrônicos estariam atingindo algum tipo de conexão com uma bondade absoluta, eles estariam mais próximos da santidade do que qualquer um. São máquinas perfeitas e santos sem alma.