Cowboy Bebop explora temas sombrios a partir do desapego de seus protagonistas
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Cowboy Bebop é uma série de anime produzida por uma equipe criativa liderada por Shinichiro Watanabe. A série se apresenta como um faroeste espacial que mostra a vida de um grupo de caçadores de recompensas no ano de 2071
É um anime que explora os seus apelos de modo ágil tanto pela rapidez em que define as tramas isoladas de cada episódio como também pela maneira que transita entre gêneros distintos sem nunca perder uma conexão emocional com seus personagens.
O texto a seguir contém spoilers.
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CONEXÕES PASSAGEIRAS
O grande diferencial de Cowboy Bebop — e que pode passar batido justamente porque algumas pessoas só enxergam uma eficiência imediata dos plots episódicos —, é como a obra usa tramas aparentemente aleatórias para explorar aspectos específicos e sutis na construção dos personagens principais.
Mesmo que exista um arco dramático específico envolvendo os protagonistas, e até uma espécie de mitologia particular no caso de Spike e da relação dele com o Sindicato, o modo como as situações e os coadjuvantes dos episódios contribuem para a construção psicológica dele e de Faye é bastante definidor.
Um episódio isolado como Waltz for Venus, por exemplo, em que Spike tenta ajudar Rocco (o jovem das plantas que quer salvar a irmã) possui um aspecto dramático tão forte como um episódio do arco principal envolvendo o vilão Vicious.
A ingenuidade de Rocco e a maneira como ele busca uma figura de aprovação revelam, para o espectador, um outro lado de Spike. É uma relação de amizade totalmente passageira, mas que cria um elo impactante.
Nesse sentido, é incrível como os episódios conseguem apresentar personagens passageiros que se tornam marcantes com pouquíssimo tempo de cena. Além de Rocco, a personagem de VT no episódio Heavy Metal Queen é um ótimo exemplo.
A série é capaz de definir com certa complexidade a personalidade desses personagens que duram apenas um episódio. Ela não faz isso através de cenas expositivas, mas integra essas personalidades e dramas pessoais na dinâmica da ação dos episódios.
Cada episódio é como um pequeno e ótimo filme de gênero em que não existe uma vaidade autoral em expor como os personagens são profundos, mas a utilização deles na resolução das tramas deixa implícita essa complexidade.
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O DESAPEGO DOS PROTAGONISTAS
A mesma coisa que acontece com Spike acontece com Faye. Os episódios, aos poucos, revelam aspectos do seu passado e da sua personalidade através da reação dela a eventos presentes, passageiros e supostamente banais.
É interessante como a série não tenta resolver esses aspectos ou propor uma conclusão edificante em relação a eles.
O passado de Faye, por exemplo, vira um fantasma implícito e sempre irresoluto. A personagem, devido ao processo de criogenia que passou, pratica uma espécie de desapego constante pela própria existência.
O episódio Speak Like a Child, que termina com o vídeo da fita betamax do passado de Faye, é até uma espécie de síntese da série pela maneira que explora essa ideia de desapego.
Spike e Jet passam o episódio inteiro tentando encontrar o aparelho certo para assistir à fita, passam por várias situações inúteis e se esforçam de várias maneiras, para depois de tudo o episódio terminar com a mensagem melancólica do vídeo sem uma resolução exata.
Como se os personagens passassem o tempo todo em movimento, o tempo todo nessa constante ação de situações passageiras, encontrando pessoas que nunca mais irão encontrar, para não precisarem lidar com aspectos essenciais das suas próprias vidas.
O episódio Pierrot le Fou, em que Spike é perseguido pelo assassino maníaco Mad Pierrot, é um comentário autodestrutivo sobre essa visão de mundo desapegada de conexões permanentes e que flerta com certas pulsões de morte.
Mesmo marcado para ser morto, Spike enfrenta o assassino sozinho e expressa uma espécie de indiferença pela própria vida.
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A ESTÉTICA DAS CENAS DE AÇÃO
Pierrot le Fou é, também, um dos melhores episódios para analisar as cenas de ação da série.
Algumas cenas são bem estilizadas, principalmente por alguns ângulos menos convencionais e por enquadramentos que priorizam mais objetos e elementos do espaço (armas em primeiro plano, aspectos dos cenários tomando conta de boa parte das composições) do que os personagens propriamente, mas, ainda assim, é uma decupagem que preza muito pela localização do espectador nos acontecimentos.
São acontecimentos rápidos e lutas ágeis (principalmente nesse episódio em específico), mas os planos, por mais estilizados, sempre buscam definir muito bem o lugar dos personagens nos espaços.
Mesmo que, nesse caso, seja um espaço mais maleável com as luzes e atrações, no fim das contas sempre existe um realismo.
Nas cenas de ação nos episódios envolvendo Vicious, essa decupagem já é bem mais clássica e dramática.
Nesse caso, a abordagem visual lembra gêneros como o western e o noir pelo modo em que confina os personagens nos planos e não oferece um espaço tão maleável assim. Os ângulos ainda deformam alguns elementos, principalmente dos cenários, mas é tudo muito rígido e dramático.
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REFERÊNCIAS CINEMATOGRÁFICAS
Cowboy Bebop é, igualmente, uma série que lida bem com as suas referências cinematográficas justamente porque tenta herdar mais essa funcionalidade dos gêneros, esse artesanato que trabalha com elementos complexos na surdina e no acúmulo de situações, do que as suas marcas óbvias.
Em alguns casos, as referências são tão sutis que é difícil determinar se são propositais ou não. O episódio em que Jet reencontra sua ex-namorada, dona de um bar, por exemplo, evoca elementos do realismo poético francês, especialmente de um filme como Cais das Sombras (1938).
Mesmo que não seja uma referência proposital, a série como um todo remete a algumas ideias desse movimento dos anos 30. Os personagens estão sempre passando por ambientes desoladores e os três protagonistas possuem, cada um ao seu modo, uma visão fatalista do mundo.
Existe um tom leve e aspectos de comédia que deixam a narrativa menos sombria, mas no fim das contas é uma visão relativamente pessimista de tudo. Até a caracterização dos planetas não é muito romantizada. É um futuro muito realista e prático.
Se fosse produzida hoje, provavelmente a animação iria jogar mais com aspectos sombrios nas cores e na iluminação, mas a estética dos anos 90 com as tonalidades saturadas lida com isso indiretamente de modo interessante porque gera um paradoxo estético particular.
Mesmo nesse universo colorido, moderno e cheio de novos dispositivos, nada parece realmente instigante. A única coisa que chama atenção dos protagonistas, assim como nos filmes do realismo poético francês, é uma possibilidade de conexão com o outro, um vislumbre de contato.
E assim como nos filmes desse movimento, isso é passageiro e, no caso de Spike, marcado por uma ideia de morte prematura e iminente — de Rocco à Julia, toda conexão que Spike estabelece com alguém parece fadada ao fim — e, no caso de Faye, marcado por uma impossibilidade de acessar a própria humanidade.
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PERSONAGEM MALDITOS
Spike e Faye são personagens divertidos e, ao mesmo tempo, malditos no sentido mais mórbido da palavra. Ela literalmente voltou dos mortos e ele está sempre marcado para morrer (pelo Sindicado, pelos bandidos que persegue) ou é assombrado por essa presença da morte nas suas relações pessoais.
É irônico como em um anime sobre a exploração de um ambiente futurista espacial, a maldição desses dois protagonistas esteja em, apesar de tudo, continuarem vivos.
O fato da morte de Spike, no último episódio, ser abordada esteticamente como um momento de graça e salvação com certeza não é por acaso. A luz muda para algo quase divino, ele cai lentamente e a imagem é direcionada para o céu, como se a morte não fosse uma tragédia, mas enfim uma sutil e tranquila satisfação final.
A maior conquista de Cowboy Bebop é tocar em temas complexos, mórbidos e sombrios, a partir de uma linguagem leve e ambígua, porém que nunca torna esses temas superficiais.
Vários episódios tratam de ideias complexas na medida em que elas brotam de resoluções práticas da trama ou, em certos casos, de elementos que são ressignificados ao longo da narrativa.