A narrativa moral de MONSTER (2004)

Monster (2004) se estrutura a partir de reflexões morais e rejeita uma evolução convencional de sua trama

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Monster (2004) é um anime baseado no mangá de mesmo nome de Naoki Urasawa.

A série narra a trajetória do médico Kenzo Tenma ao tentar compreender os mistérios de uma série de assassinatos e acontecimentos envolvendo Johan Liebert, um paciente que ele salvou.

O anime apresenta uma estrutura narrativa desafiadora, mas segue convenções estéticas clássicas que reforçam o drama e o suspense.

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A HIPERDRAMATIZAÇÃO

Monster possui uma trama central que é relativamente simples. É um anime que se torna complexo na medida em que insere novos personagens e novos núcleos em sua estrutura narrativa e não exatamente na medida em que expande essa trama.

A premissa básica, durante todos os episódios, evolui muito pouco. Não é uma obra interessada na resolução completa ou na evolução complexa dessa premissa, mas em possíveis traços humanos e morais (estes sim bastante complexos) que orbitam o acontecimento central envolvendo os personagens de Tenma e Johan.

Nesse ponto, a série possui uma espécie de minimalismo paradoxal, já que a quantidade de personagens que surgem e de pequenos núcleos que orbitam outros núcleos nos confunde ao mesmo tempo que pouca coisa de realmente concreto é revelado sobre o vilão Johan e o seu passado.

Existe, inclusive, uma hiperdramatização do pouco que é apresentado sobre o passado de Johan e de sua irmã.

Os episódios sempre repetem cenas e acontecimentos-chave que nunca ficam totalmente claros, ou que demoram para serem esclarecidos, e servem como um ingrediente sensorial, e pouco explicativo, que expande o drama sugerido.

Em vários casos, essas situações e esses flashbacks são apenas definidos por uma imagem-motivo – os três sapos, a mansão da rosa vermelha, o Kinderheim 511.

Imagens que não servem muito bem para informar nada, apenas para ilustrar um possível preceito que será explorado de modo mais conceitual ou alegórico. Um potencial simbólico que é reforçado pela relação da trama com livros infantis ilustrados.

Os episódios transformam informações incompletas em códigos visuais que, pretensamente, resolveriam, juntos, um grande enigma, porém nada é exatamente resolvido e tudo funciona como um apelo independente que dialoga de maneira abstrata com as ideias principais da obra sobre o bem e o mal.

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ENTRE O DRAMA E A FILOSOFIA

Tudo isso pode decepcionar algumas pessoas, já que a série, querendo ou não, está sempre prometendo alguma revelação no modo em que apresenta essas informações, e até no seu ritmo dramático, mas isso nunca acontece de maneira totalmente convencional. Ou, quando acontece, nem todas as motivações e razões ficam realmente explicadas.

O anime lida com apelos convencionais e com várias convenções de gêneros como suspense, crime, melodrama e terror, porém dentro de uma estrutura pouco tradicional.

Algo que pode remeter um pouco aos filmes da cineasta francesa Claire Denis, principalmente aos seus longas que tendem a dialogar diretamente com thriller e terror. Existe uma premissa narrativa bastante simples e direta nessas obras de Denis, mas os trabalhos, na verdade, nunca são sobre aquela premissa propriamente.

Os filmes de Claire Denis são sobre conceitos mais abstratos que se utilizam desses elementos narrativos de modo muito livre.

Do mesmo modo, existe em Monster um equilíbrio entre os elementos práticos do suspense, do terror e até da ação, e os elementos filosóficos que as situações oferecem.

A obra está, constantemente, debatendo temas que envolvem moral, violência, justiça e o valor da vida humana, ao mesmo tempo que apresenta situações muito simples e diretas explorando aspectos tradicionais de uma narrativa de gênero como perseguições, tiroteios, lutas, pessoas fugindo da cadeia, sequestro, e por aí vai.

O que segura toda a estrutura dos capítulos não é nem a presença de Tenma e Johan (eles não aparecem em vários episódios), mas a capacidade dos episódios em tratar, de maneira muito particular, dos temas universais que o embate entre o protagonista e o antagonista representam.

O episódio 21, A Wonderful Holiday, é um ótimo exemplo.

Ele se passa em outra localidade (no sul da França), lida com personagens que são até esquecidos em algum momento (como Muller) ou nunca tem a sua função tão bem definida durante boa parte da série (como Roberto) e possui uma pequena trama que, apesar de considerar acontecimentos anteriores, se basta por si mesma.

Existe um pequeno arco que contextualiza um personagem aleatório (Mueller), apresenta a sua família e, no decorrer daqueles meros 20 minutos, fecha tanto uma ideia prática — é um curta de ação e crime muito elegante — como também uma ideia mais profunda e dramática (lida com o sentimento de vingança de Nina e com questões íntimas de Mueller).

É um episódio que não precisaria da trama central do anime para existir, porém é uma consequência temática direta dela. Vários outros episódios e personagens funcionam nessa lógica.

São personagens muito bem construídos não pelo modo que se relacionam ou que afetam o real destino de tudo, mas por equilibrarem tão bem esse aspecto prático e filosófico de um jeito único.

Ou ainda por apresentarem traços humanos muito pessoais nas atitudes desses personagens e, no fim das contas, oferecerem uma “moral da história” de maneira bem certeira, reforçando ainda mais o diálogo com o formato dos livros infantis.

O episódio 09, com o personagem que treina Tenma, também remete a algo parecido. Em apenas 20 minutos, ele define todo um passado que fica subentendido na relação daquele homem com a criança que adotou.

E, ao final também propõe uma conclusão, propõe uma mudança que ocorreu durante aquele episódio, uma “mensagem final”, por assim dizer.

No geral, o trabalho das elipses é fundamental nisso. Mesmo que estilisticamente a abordagem estética seja bastante clássica — dialogando, inclusive, com uma tradição cinematográfica de thriller realista à Silêncio dos Inocentes (1991) —, o modo como a narrativa deixa de mostrar certos acontecimentos, e como literalmente esquece de Tenma por vários episódios seguidos, remete a algo mais arriscado e pouco convencional que beira a estrutura dos filmes de Yasujirō Ozu.

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REPRESENTAÇÕES DO BEM E DO MAL

Estes episódios independentes não apresentam simples arcos comuns de personagens; são pequenas sagas dramáticas que se relacionam com temas universais caros ao autor. Principalmente com temas envolvendo o valor da vida humana e as representações de bem e mal.

Tenma e Johan funcionam, acima de tudo, como as grandes representações desses temas.

Eles são a matriz temática e extremista de cada um dos lados: o bom e o mau, a moral natural e o relativismo psicopata, o humanista altruísta e o anticristo que quer dominar o mundo. Os episódios refletem sobre esses temas sem nunca depender da resolução do embate entre protagonista e antagonista.

É interessante, também, como nos capítulos finais, a obra rejeita tanto um aspecto fragmentado dos episódios passados, já que centraliza tudo em uma situação chave, como também rejeita o constante trânsito geográfico que perpassa os episódios anteriores, agora tudo se passa na cidade pequena de Bonaparta.

Além disso, a obra também renega, nesse arco final, o lado lúdico com que alguns temas eram tratados anteriormente e se transforma em uma espécie de filme de sobrevivência de terror e suspense.

A cidade em que as ações finais se passam funciona como um dispositivo que reúne todos os personagens e lida com tudo de modo muito mais direto e às claras.

O anime até rejeita a romantização ingênua que tomava como motivo dramático os livros do Bonaparta (aqui ele é só um idoso aparentemente indefeso e não mais o arquiteto de todo esse imaginário) e deixa uma violência muito direta tomar conta do ambiente.

No momento do encontro final entre o Johan e Tenma nada é, realmente, resolvido. Apenas as suas naturezas radicais são reiteradas.

O que, novamente, pode soar um pouco frustrante do ponto de vista de uma resolução convencional, mas faz sentido dentro da lógica conceitual que reforça elementos da natureza de cada um e não pretende propor uma mudança, já que deseja, até mesmo, demonstrar o caráter imutável dessas representações de bem e mal.

Narrativamente falando, essa falta de ação entre os dois pode parecer estranha, mas é algo que também faz sentido dentro dessas ideias metafísicas que a obra possui.

O próprio Tenma, ao representar essa ideia radical de um bem quase absoluto, não irá responder a um instinto totalmente humano. Ele é uma espécie de santo.

As atitudes de Tenma podem soar altruístas demais, mas da mesma forma que Johan é uma alegoria para o mal, Tenman é uma alegoria para o bem. E os dois, cada um na sua medida, funcionam como conceitos utópicos dessas ideias.

O fato de Tenma, novamente, salvar Johan no final mostra essa falta de uma emoção diretamente humana, mostra essa falta de uma natureza “pecadora” no personagem — ele é incapaz de quebrar um mandamento. Tenma não age pelas suas emoções, mas por um espírito de bondade.

Não importa o que aconteça, não importa que a vida dele tenha se transformado em um inferno, ele nunca vai quebrar um pretenso juramento da profissão e permanecerá virtuoso.

A obra coloca Tenma como refém do juramento da medicina, mas, na verdade, ele vive sob um juramento divino. Nunca irá matar, roubar, ou quebrar qualquer lei cristã. Não importa a situação em que esteja.

Tenma é, em certa medida, como um personagem do escritor Georges Bernanos.

Um homem que pode ser atormentado pelo que for, mas não irá se corromper e poderia morrer por essa santidade não declarada. E talvez o final, com Johan sumindo, seja até uma sugestão de que, apesar daquela aparente paz passageira, o seu sofrimento não terá fim.