MEGALÓPOLIS (2024): Classicismo tecnológico

Francis Ford Coppola celebra as possibilidades tecnológicas do cinema em épico maneirista

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Em Nova Roma, uma espécie de Nova York reimaginada como uma Roma contemporânea, o arquiteto Cesar Catilina deseja revitalizar a cidade e transformá-la em uma utopia chamada Megalópolis. Cesar entra em conflito com o prefeito da cidade, Franklyn Cicero, e também inicia um romance com Julia, a filha de Franklyn. O filme é uma livre adaptação moderna da Conspiração Catilinária dentro da história romana.

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CLASSICISMO TECNOLÓGICO

Se analisarmos a carreira de Coppola a partir dos anos 2000, quando ele busca mais liberdade e começa a fazer filmes mais baratos em formato digital, percebemos sua genuína vontade de experimentar com a linguagem. No entanto, também notamos que ele nunca abandona uma abordagem clássica.

Em filmes como Velha Juventude (2007) e Tetro (2009), o cineasta, de fato, experimenta com a estética e desenvolve alguns personagens de maneira menos convencional. Contudo, ele sempre constrói cenas que seguem certas convenções, tanto na forma como decupa seus planos quanto na maneira clara e direta com que localiza o espectador.

Tetro (2009) – Francis Ford Coppola

Mesmo sendo filmes gravados em digital e que, sob certo aspecto, propõem experimentações com essa tecnologia por meio de enquadramentos inventivos, fusões de imagens e um jogo plástico com a textura do vídeo, a base dessas obras ainda é, de certa forma, clássica.

Pensando nesses últimos filmes e, agora, em Megalópolis (2024), poderíamos chamar esse método, talvez, de “classicismo tecnológico”.

Outros grandes diretores americanos, como James Cameron, George Lucas e Robert Zemeckis, também se encaixam nessa abordagem. São cineastas que mantêm uma abordagem clássica enquanto exploram novas tecnologias e integram elementos inovadores na estética de suas obras.

Inclusive, Coppola e seu diretor de fotografia usaram a mesma câmera digital que George Lucas utilizou na trilogia prequel para filmar Velha Juventude (2007) — a Sony HDW-F900, uma câmera pioneira da Sony que gravava em HDCAM e tinha resolução de 1080p.

Velha Juventude (2007) – Francis Ford Coppola

Megalópolis representa o ápice desse processo que já vinha se desenvolvendo em seus filmes anteriores. Até porque Coppola realizou essas outras obras enquanto concebia Megalópolis. Em certo sentido, são filmes que surgiram a partir do processo criativo desse ambicioso projeto.

Para além dos aspectos formais, a própria trama de Velha Juventude (2007) gira em torno de um autor que tem um projeto megalomaníaco que engloba toda a história da linguagem, algo que remete à premissa igualmente grandiosa de Megalópolis.

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A HIPERCONSTRUÇÃO ESTÉTICA

Em termos formais, a maior diferença de Megalópolis para os longas anteriores é que este é um filme com outro senso de escala. Tudo é muito mais grandioso e, visualmente, muito mais dinâmico.

A câmera se movimenta mais, já que o cineasta utiliza gruas e movimentos de dolly em vários momentos. É um filme muito mais vibrante. Em Tetro (2009) e Velha Juventude (2007), Coppola já experimentava com a imagem digital de modo dinâmico e plástico, mas aqui isso toma outras proporções.

Mesmo sendo um filme mais vibrante e dinâmico, a obra mantém um certo rigor e localiza muito bem o espectador em cena. O cineasta ainda conserva uma abordagem clássica característica.

Já na cena de abertura, em que várias pessoas discutem o futuro da cidade ao redor de uma enorme maquete, o diretor apresenta diversos personagens de uma só vez. As falas se intercalam rapidamente, há luzes piscando, alguns personagens se movimentam mais, e há certos estímulos visuais, mas tudo dentro de uma construção clássica, na qual o diretor posiciona os elementos de forma precisa.

O filme inteiro segue essa lógica. Não a de uma desconstrução da cena, mas a de uma hiperconstrução. Coppola faz escolhas estéticas marcantes, inserindo diversos estímulos em seus planos, mas sem chegar a uma desconstrução objetiva da narrativa visual.

Na sequência do Coliseu, acontece algo semelhante. Há várias situações e estímulos visuais, a estética é carregada e até artificial no uso das cores e outros elementos, e alguns ângulos de câmera são mais aberrantes. Ainda assim, há uma dinâmica tradicional na montagem, que intercala as situações de maneira didática.

Nesse ponto, o filme se diferencia bastante de um longa como Speed Racer (2008), por exemplo, em que a cena se transforma em um fluxo contínuo que, de fato, desconstrói muito mais a lógica tradicional da decupagem.

Aqui, mesmo quando Coppola utiliza fusões na imagem ou faz colagens tecnológicas, ele o faz para representar um conceito mais abstrato que tem relação dramatúrgica direta com o que está sendo encenado e que ainda responde a uma dialética clássica de decupagem e montagem.

A montagem do longa é dinâmica e repleta de estímulos, mas nunca desorienta o espectador, como acontece, por exemplo, nos filmes de Tony Scott. Coppola organiza a cena com precisão e utiliza os estímulos de maneira pontual.

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O ÉPICO E O EXPERIMENTAL

No sentido de o cineasta propor escolhas estéticas marcantes, ágeis e pictóricas, ao mesmo tempo que preserva uma abordagem clássica, Megalópolis lembra certos filmes de Abel Gance, cineasta da escola francesa pré-moderna. Uma escola que explorava uma montagem e uma estética experimentais, mas dentro de uma estrutura narrativa clássica e de viés universal.

Gilles Deleuze chama essa escola francesa pré-guerra de “quantitativa” porque seus cineastas estavam interessados na quantidade de movimento em cena e nas relações métricas que tais movimentos permitiam dentro da imagem. Ou seja, um rigor pictórico que remete a Megalópolis.

Além disso, a maneira como Coppola faz referência a certas técnicas específicas – como a vinheta na imagem (o círculo que se fecha nos personagens) e a divisão da tela em três partes – remete a recursos usados por Abel Gance em seus trabalhos.

É como se Coppola, propositalmente, adotasse uma abordagem anacrônica para testar novas possibilidades tecnológicas no cinema. Ele busca a mesma essência que outros épicos almejavam, mas utilizando novas tecnologias. Sendo assim, atinge a imersão do espectador, como o cinema clássico atinge, porém por meios contemporâneos.

Em última análise, o filme não possui uma estética que desconstrói a cena. Ele segue uma estética maneirista: parte de uma forma clássica e, a partir dela, faz escolhas mais intensas, hiperconstruindo essa estrutura tradicional. O que, para Coppola, não é novidade, pois diversos de seus filmes das décadas passadas seguem essa lógica, sendo O Fundo do Coração (1981) um dos exemplos mais emblemáticos.

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A LIVRE ASSOCIAÇÃO DE IDEIAS

Aesar desse rigor, Coppola também é um cineasta bastante aberto durante a produção dos seus filmes. Apocalypse Now (1979) ficou famoso por ter grandes cenas improvisadas, e aqui ele também lidou com isso.

Algumas pessoas do elenco de Megalópolis relataram que o cineasta costumava ter novas ideias durante as gravações. Ao assistir ao filme, isso se torna relativamente perceptível na forma como alguns diálogos apresentam temas e falas mais livres.

Nesse aspecto, trata-se de um filme que, em determinados momentos, adota uma lógica de livre associação de ideias. Isso remete um pouco a Cosmópolis (2012), de David Cronenberg, tanto pelo tom mais teatral e pelo fato de os personagens tratarem de grandes temas em suas conversas quanto pela forma como passam de um assunto a outro de maneira muito rápida.

É como se a função dos personagens não fosse exatamente explorar um tema a fundo ou enfatizar um aspecto dramático nos diálogos, mas sim aceitar essa verborragia sensorial ininterrupta.

Ainda assim, o rigor continua. Existe improvisação, mas dentro de um conceito previamente definido pelo cineasta. Dessa forma, a livre associação de ideias não soa aleatória. Trata-se de uma abordagem mais teatral e alegórica que também se reflete na maneira como o diretor caracteriza a cidade com grande liberdade.

Em alguns momentos, a cidade do filme parece simplesmente Nova York; em outros, remete ao Império Romano; e em outros ainda é uma mistura das duas coisas. O conceito de arte e cenografia está sempre em movimento, respondendo unicamente a um impacto visual das cenas de forma isolada.

Se for interessante para a cena que a cidade pareça mais urbana e menos antiga, ela assim será; se não, assumirá um aspecto mais teatral, mais artificial. O cenário funciona como um ambiente sugestivo do que se passa na cena do que como um espaço realista.

A cena de César e Júlia sobre as vigas no céu é um ótimo exemplo: trata-se de um cenário construído com o único objetivo de ter um apelo pictórico. Ele não busca realismo, mas sim um impacto visual forte, quase como o cenário de uma peça de teatro.

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A OBSESSÃO DE UM INDIVÍDUO

Em relação ao tema do filme, o que mais chama a atenção na história — e que dialoga com todo o processo formal do longa e até com essa fase artística de Coppola — é a ideia de uma salvação coletiva concebida a partir de um único indivíduo.

A Megalópolis que César pretende criar teoricamente resolveria todos os problemas da cidade e de seus habitantes. Ele tem essa visão de uma redenção coletiva, mas que se manifesta por meio de uma lógica essencialmente autocentrada, como se sua jornada artística e técnica fosse capaz de salvar a todos. No entanto, essa ideia nunca se torna totalmente clara.

Essa Megalópolis e também assume um caráter de abstração, uma utopia. César pode ser um gênio, mas é, ao mesmo tempo, um homem alienado por suas próprias criações e divagações.

Isso reflete, de certa forma, o próprio Coppola. Devido às circunstâncias, ele se afastou do restante da indústria cinematográfica, passou a financiar seus próprios filmes e a sustentar ideias grandiosas sem necessariamente considerar o contexto em que está inserido.

É claro que Coppola não acredita que salvará o cinema sozinho. No entanto, todo o seu processo criativo nos últimos 20 anos tem buscado apontar para um futuro possível do cinema, baseando-se, sobretudo, em iniciativas individuais.

O projeto de Megalópolis foi o que levou Coppola a essa fase de isolamento e independência. Assim, o filme acaba funcionando como uma espécie de purgação, pois pouco dialoga com o que é produzido atualmente ao mesmo tempo que apresenta uma visão cinematográfica grandiosa.

César pode ser interpretado como um reflexo de Coppola, um indivíduo que se isolou devido às circunstâncias. Ele é um produto do seu meio, de uma indústria que não está interessada em ser desafiada ou em propor novidades, mas sim em manter o status quo comercial.

Obviamente, o caso de Coppola é uma exceção, já que seu sucesso financeiro também vem de outras fontes de renda. Ainda assim, é louvável o fato de o cineasta ter se mantido fiel a si mesmo ao longo das décadas em que desenvolveu esse ambicioso projeto.