A BESTA (2023): Processo exposto

Em narrativa experimental, Bertrand Bonello reflete sobre as possibilidades da representação cinematográfica

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Em um futuro próximo, as emoções intensas devem ser eliminadas através de uma purificação do DNA humano. Gabrielle, vivida por Léa Seydoux, revisita suas vidas passadas ao passar por esse processo.

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A Besta é um filme que usa muito bem a ideia de tempos distintos para conceber ideias distintas de mise-en-scène.

Não no sentido de meras ilustrações de tais tempos distintos, mas como se as dinâmicas das cenas da obra se moldassem em todos os seus detalhes a certas dinâmicas do cinema — e da imagem de modo geral, considerando o uso que o longa faz de câmeras amadoras, imagens de câmeras de vigilância e outros formatos — que são reflexos do tempo que está sendo encenado.

Os trechos de A Besta que se passam na Belle Époque, por exemplo, além de serem muito bem fotografados em 35 mm, possuem uma decupagem clássica focada na fluidez dos diálogos e em ações sutis intuídas por movimentos harmoniosos da câmera.

É curioso como, em teoria, essas sequências propõem uma espécie de simulação de uma obra cinematográfica clássica, tanto nos sentido da trama do filme (a visita à vida passada funciona como um experimento, também, de nostalgia) como da escolha formal bastante consciente do diretor, mas, ainda assim, são momentos que contemplam uma fascinação genuína que remete a obras de Max Ophüls.

Já os momentos que se passam em 2014, gravados em digital, possuem um certo distanciamento gélido daquele mundo impessoal que é retratado e integram aspectos de uma ficção ambígua — como o vlog do personagem de George MacKay — que se mistura com outros tratamentos contemporâneos de imagem: virtual do computador, automatizada das câmeras de segurança.

Novamente, o diretor reflete sobre tendências estéticas e temáticas que dialogam com essa época dentro da ideia de simulação, mas também faz com que tudo soe como um autêntico filme de David Cronenberg gravado em digital.

Bonello busca, a partir das vidas passadas e das representações de Léa Seydoux, uma espécie de reflexo formal das ideias de amor, isolamento e tragédia que repensam tanto a forma da narrativa como a forma estética e remetem a uma variedade de representações do cinema.

A vida na Belle Époque lembra Alain Resnais e Max Ophüls. A vida contemporânea lembra David Cronenberg e a terceira temporada de Twin Peaks. E a vida presente (ou futurista) em 2044 remete a certos filmes de Jonathan Glazer.

Dentro dessa ideia de padrões de representação que disparam modelos de imagem, a atuação de Léa Seydoux e George MacKay nunca é totalmente realista. São atuações que assumem que cada uma daquelas vidas são projeções aproximadas que se confundem com a imagem deles como performers.

É um filme ambicioso em todos esses pontos e, caso tal dinâmica não funcione com o espectador, a obra, invariavelmente, pode soar um pouco ridícula.

Mas se o espectador embarcar e comprar a proposta, o longa se revela uma experiência de fascinação que remete aos grandes filmes de Brian de Palma. Principalmente em como o processo do cinema se torna impactante justamente porque evidencia a sua elaboração e acredita nas diversas possibilidades dessa elaboração em todos os seus instantes.