CHIME (2024): Espaços desconexos

Em curta-metragem de terror, Kiyoshi Kurosawa evidencia a impessoalidade aterradora dos ambientes urbanos

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Um professor de culinária começa a ouvir um som enigmático e tem sua rotina perturbada por eventos mórbidos.

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Chime até remete a filmes como Crimes Obscuros (2006) e outros trabalhos do próprio Kiyoshi Kurosawa que compartilham a ideia do espaço urbano como um não-espaço aterrador — ou um “espaço qualquer” na definição do Pascal Augé —, mas é um longa mais explícito tanto na relação com o terror como na sua abordagem experimental.

O tema da alienação no espaço urbano, bastante presente no cinema do diretor, está, nesse novo trabalho, relacionado a uma ideia de violência irracional de maneira menos justificada e mais franca.

Talvez mais do que nos outros filmes do cineasta, o que gera essa alienação e violência não é só a noção patológica de isolamento do indivíduo contemporâneo no meio coletivo, mas a falta de ligação concreta entre os ambientes do espaço urbano.

Os espaços e cenários, em Chime, são tão fechados e sem referências particulares que cada um atua como se fosse uma dimensão independente.

A fotografia digital sóbria e o tom azulado reforçam muito bem esse aspecto impessoal e, ainda, conceitual dos cenários.

É uma fotografia que lembra a relação que David Cronenberg e David Lynch, em seus trabalhos gravados em vídeo, constroem entre uma imagem digital cristalina e impessoal com um ambiente urbano sem identidade que flerta com uma realidade distópica.

A cozinha em que o professor dá aula é um ótimo exemplo disso. É um cenário que ressignifica um ambiente pessoal (uma cozinha, um lugar doméstico) através de um olhar gélido e institucionalizado. As luzes que o trem projeta no espaço quando passa ao lado da sala de aula reforçam um certo aspecto metafísico do ambiente.

De modo geral, a textura cristalina e aterradora da imagem se encaixa ainda melhor na lógica da decupagem de Kiyoshi em seus últimos filmes, caracterizada por planos gerais com tudo em foco (tudo está exposto), mas movimentos de câmera sutis.

É uma câmera que enxerga tudo, mas que se movimenta com muito cuidado e, apesar dos planos abertos, nunca revela os ambientes por inteiro.

O único momento em que existe uma relação mais integral entre o espaço e a imagem em Chime é, justamente, quando o protagonista enterra um corpo no mato e a câmera se liberta dessa lógica desconexa de espaços quaisquer da cidade.

Os 10 minutos finais do curta, por sua vez, são das melhores coisas que o cineasta já fez e remetem muito ao cinema de Maya Deren. Na última sequência, o protagonista parece ter consciência da sua despersonalização e, consequentemente, da falta de conexão entre todos os espaços que ele habita.

Ele olha tudo com novos olhos (a sua sala, o filho, o quarto do filho) e, quando está no meio da rua e olha para os lados, a própria câmera repete o seu movimento e também se vira para os lados, como se a própria câmera atuasse como o seu duplo que depois o observa ir embora e entrar em casa novamente.

É um momento em que o filme assume diretamente a câmera — agora filmando em película super 16 e não mais em vídeo — como uma entidade de vida própria que não apenas observa o protagonista, mas também refaz os seus movimentos.

A despersonalização dele se transforma no próprio dispositivo. Uma ideia bastante presente no cinema de Deren que se encaixa muito bem na temática e na forma deste trabalho de Kiyoshi Kurosawa.