PROPRIEDADE (2022): Curto-circuito social

Em filme que recusa os bons modos do cinema político, Daniel Bandeira evidencia as ações inconsequentes de empregado e patrão

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Uma mulher se tranca em seu carro blindado para se proteger de uma revolta de trabalhadores da fazenda de sua família.

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Propriedade lembra um pouco os filmes de Carolina Markowicz no sentido de estar mais interessado em um aspecto imoral dos dois lados do conflito em cena do que em seguir o típico manual de instruções de filme de esquerda.

Nesse sentido, temos até a impressão de que, indiretamente, o filme ironiza alguns aspectos de Bacurau, de Kleber Mendonça Filho.

Enquanto Bacurau se vende como um filme de gênero, mas, no fundo, é um manual de bons modos do cinéfilo militante médio, Propriedade começa didático, mas aos poucos vira um suspense mais interessado nas resoluções imediatas que as situações de ameaça apresentam do que em qualquer subtexto pseudossociológico didático.

É um filme que sabe que, ao se focar nessas resoluções imediatas, está sendo igualmente político, já que de fato assume a figura do outro com a devida humanidade e contradições que são caras a qualquer um.

O subtexto e o texto político existem, mas assim como nos filmes de Markowicz, Daniel Bandeira se aproveita muito bem de possíveis tensões dentro desse discurso para alimentar as convenções dos gêneros que trabalha.

O longa assume o papel ameaçador dos empregados como algo que nasce do contexto e das situações que são submetidos, mas não limita essa representação aos bons modos que o cinema brasileiro contemporâneo está acostumado.

Por mais que seja uma revolta justificada contra o patrão, o filme nunca cai na armadilha de um José Padilha de sempre culpar as instituições para isentar as próprias ações. Os empregados possuem um lado pessoal desenvolvido e as suas reações inconsequentes causam reviravoltas importantes na trama.

Mesmo que os empregados estejam inseridos nessa relação de classe, e mesmo que ela seja a causa essencial do embate, cada um deles reage a isso de modo específico.

Pode-se argumentar, talvez, que os empregados estejam animalizados, porém, como um todo, eles parecem muito mais humanizados dentro de uma lógica reativa e instintiva.

Eles não fazem o que é, exatamente, certo; fazem o que parece prático (e racional, dependendo do personagem) a partir das situações que se encontram e a partir da visão de cada um. Mesmo os excessos amorais respondem a uma reação pessoal e emocional bastante humana de cada indivíduo.

O filme não tenta tornar o grupo de trabalhadores empático — pelo contrário, a empatia está mais na figura da personagem da Malu Galli — e os coloca como sobreviventes de uma situação limite em que não tem muito a perder. A personagem de Galli serve para evidenciar esse fogo cruzado.

É até interessante como o filme usa a personagem dela para subverter algumas ideias de survival film. O espectador pode torcer para que ela consiga passar ilesa por todas as circunstâncias e o roteiro, teoricamente, se baseia muito nas tentativas de fuga e em simples atitudes de sobrevivência por parte dela, mas no final torna a sua figura resignada.

Visualmente falando, o filme poderia ser mais inventivo. A decupagem é criativa em sua praticidade e, em certos momentos, usa bem a janela do scope para relacionar duas situações distintas no mesmo plano e intensificar a tensão, mas também resolve alguns momentos de modo padronizado demais.

A sequência da perseguição noturna, principalmente, tem um potencial estético que soa relativamente desperdiçado. Mas não é nada que afeta muito o efeito final do obra.

A cena final, inclusive, funciona bem justamente por não ser muito estilizada e integrar um aspecto cru e frio daquela ação.

É uma cena que funciona como um ritual silencioso que, talvez se fosse gravada por outro diretor, transformaria aquilo em uma espécie de catarse política grandiosa e didática para tuiteiro pirar, mas é mais forte (inclusive politicamente) justamente por assumir aquele gesto violento com a devida frieza que a circunstância demanda.