ZONA DE INTERESSE (2023): Filme de laboratório

Em abordagem metódica que remete a Robert Bresson, Jonathan Glazer propõe um simulacro do mal

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Durante a Segunda Guerra, o comandante de Auschwitz, Rudolf Höss, juntamente com sua esposa, criam sua família em uma casa modelo ao lado do campo de concentração.

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UM SIMULACRO DO MAL

O modo como Jonathan Glazer filma a casa da família Höss e a maioria dos espaços de seu filme nos passa a sensação de que estamos em um museu.

Os planos abertos, a alta profundidade de campo, a cor pouco saturada e a iluminação quase sempre chapada reiteram a sensação de um espaço mais impessoal e asséptico do que totalmente realista.

A maneira como até o fundo dos cenários externos mostra as torres e janelas do campo de concentração em foco também passa uma ideia fake da casa como um estúdio construído.

Nesse ponto, Zona de Interesse passa a impressão de que estamos diante de uma encenação sombria à Wes Anderson ou Roy Andersson. Inclusive, a profundidade de campo da fotografia cria um aspecto bidimensional nos cenários bem característico dos filmes desses dois cineastas.

Até existe certo realismo e espontaneidade na ação dos personagens e nas atuações de forma geral. Todos realizam gestos cotidianos e o casal tem as suas idiossincrasias. Mas a caracterização e a decupagem passam sempre a ideia de algo sendo construído e encenado.

Mesmo a dinâmica geral das ações em cena limita os personagens a certos atos que, gradualmente, se tornam repetitivos e marcados. Como se cada um, no fim das contas, fosse limitado a um número específico de movimentos e gestos que o seu modelo (em um sentido bressoniano) foi programado para realizar.

Glazer cria um dispositivo caseiro e cotidiano para evidenciar as ações impessoais e robotizadas como um contraponto a uma humanidade que falta em todos. Estamos diante de uma espécie de The Sims sobre a banalidade do mal.

Na medida em que os personagem automatizam as suas ações, eles purgam qualquer culpa evidente dos seus atos assassinos ou, no caso dos familiares, da consciência e tolerância daqueles atos.

São escolhas de linguagem que, constantemente, passam a ideia de que a forma moral de abordar esse tema, na visão do diretor, é através desse distanciamento que toma os personagens como modelos.

Dentro dessa abordagem, a encenação funciona como um reflexo artificial de um acontecimento. Um estudo que, pelo bem e pelo mal, também assume o seu devido fetiche de cientista querendo observar aquelas ações minuciosas de pessoas supostamente alienadas ou simplesmente assassinas que servem a um sistema.

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A REALIDADE HUMANA OCULTA

Perto do final do filme, o personagem de Rudolf Höss para em frente a escadas vazias e tem um possível vislumbre do futuro através das imagens do museu real de Auschwitz sendo limpo nos tempos atuais, como se um dos bonecos desse esquema que o diretor criou questionasse a própria realidade.

O fato dos corredores estarem escuros nessa mesma cena, como se nada existisse para além daquele cenário, também reforça a ideia de Höss ser apenas um boneco dentro de um jogo em que os cenários são construídos na medida em que são apresentados.

A partir desse dispositivo, o único traço de uma realidade concreta e, consequentemente, de uma humanidade oculta, está naquilo que nunca se vê.

Nesse sentido, existe um trabalho pesado com o desenho de som que até flerta com o artificialismo e com um aspecto sensorial bastante presente nos filmes anteriores de Glazer, mas os sons do campo de concentração funcionam como um dos únicos traços de humanidade da sua direção.

Enquanto as escolhas de fotografia criam um mundo artificial em que o olhar do espectador consegue alcançar praticamente tudo o que está nos limites da cena, as escolhas sonoras possuem camadas bem mais nebulosas, abstratas e humanas.

O único momento em que esse artificialismo estético que deixa tudo com cara de sala de museu é quebrado é quando o cineasta usa a fotografia em negativo para mostrar a garota e as maças.

Como se o dispositivo, nesses momentos em que se depara com uma cena genuinamente humana, rejeitasse automaticamente esses traços e precisasse, literalmente, inverter a sua lógica de captação.

Uma escolha que lembra o método de Steven Spielberg em A Lista de Schindler (1993) no sentido de isolar o traço humano e inocente da garota com o casaco vermelho, mas, ao mesmo tempo, é também o seu oposto conceitual.

Enquanto o filme do Spielberg enfatiza o humanismo e o sofrimento, o longa do Glazer é um experimento de laboratório em que esse humanismo é representado como um “erro no sistema” (a imagem em negativo) e não através de um apelo visual empático.