David Fincher faz uma comédia de erros sobre a banalidade da violência
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Baseado na série homônima de história em quadrinhos de Alexis Nolent e Luc Jacamon, o filme mostra um assassino profissional, vivido por Michael Fassbender, que começa a ser perseguido por seus empregadores após falhar em uma missão.
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A BANALIDADE DOS ATOS VIOLENTOS
Para muitas pessoas, o fato de O Assassino juntar a premissa de um thriller relativamente comum com a direção metódica e sofisticada de David Fincher pode não fazer muito sentido.
Mas o grande valor do filme está justamente em como a abordagem sóbria do cineasta reforça a banalidade dos atos violentos da trama e até a visão de mundo do protagonista. No fim das contas, a obra funciona como uma espécie de comédia de erros levemente existencialista muito inventiva.
Como não existe um grande roteiro para brilhar ou personagens com presenças absolutamente marcantes — pelo menos não como existia em A Rede Social (2010) ou Garota Exemplar (2014) — a narrativa se transforma em uma sucessão de acontecimentos violentos e banais que são muito mais definidos pela execução ágil e, em certo sentido, irônica das suas resoluções, do que por qualquer significado pretensamente mais profundo.
É um filme bastante espirituoso nesse sentido, já que nada parece ter tanta importância e alguns atos extremos são reduzidos a algo corriqueiro. Sendo assim, essa banalidade e desapego se transformam no tema do filme. As mortes são tratadas como algo habitual e nenhuma é mais dramática ou grandiosa que a outra.
Seguindo essa lógica, a direção de Fincher mantém quase sempre um mesmo tom quando lida tanto com cenas rotineiras como também com momentos de tensão e clímax pontuais.
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ELOGIO AO HOMEM COMUM
É interessante perceber, também, como o próprio discurso repetitivo e impessoal do protagonista dialoga com essa ideia de um personagem que quer se apagar, que quer, ele mesmo, anular seu próprio significado.
Ou, se não quer se apagar, pelo menos quer se manter o mais discreto e comum possível. Aspectos totalmente diferentes dos personagens vividos por Jesse Eisenberg e Rosamund Pike em A Rede Social (2010) e Garota Exemplar (2014), que possuem uma vaidade declarada, exposta e excêntrica.
Até o modo como, no final do filme, o personagem de Fassbender se assume como parte da maioria lida com essa ideia de que, apesar do seu trabalho incomum, ele deseja apenas a paz que qualquer um deseja.
Ainda que a sua sociopatia também seja um tema da obra, ela nunca é particularizada. Ele é uma sociopatia “funcional” que não mata de modo dramático ou muito evidente, mas sim do modo mais eficiente, direto e limpo possível.
Claro que mesmo esse modo direto e limpo pode soar cool em vários momentos. E mesmo esse discurso de um homem que não deseja deixar nenhum tipo de rastro também vira uma espécie de narração à Paul Schrader que oferece reflexões existencialistas sugestivas, mas a obra sempre chega nesse discurso estiloso através de um caminho pouco pretensioso e bem-humorado.
O filme também nunca faz desse discurso o principal apelo de tudo e a montagem nunca se atém tanto assim a uma situação ou a uma reflexão, já que o personagem está sempre em movimento e suas divagação vão se atropelando.
Nada do que ele passa se acumula. Ele apenas lida com a situação presente do modo mais eficaz possível. Algumas elipses ou ausência de cenas específicas até lembram a estrutura de um filme de Yasujirō Ozu quando a narrativa deixa algumas informações implícitas — toda a vida dele na República Dominicana, por exemplo, permanece sempre um mistério.
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UM DISCURSO OBJETIVO
Mesmo visualmente falando, O Assassino é um trabalho mais limpo e com planos menos marcantes do que os outros de Fincher. O que também dialoga com essa ideia de apagamento e banalidade.
O primeiro ato é mais estilizado, tanto em termos de fotografia e cor, como também menos contido com a voz off constante, mas depois o longa entra em um desenrolar rápido de acontecimentos e nunca existe uma imagem muito épica ou totalmente memorável.
Novamente, tudo é reduzido ao método e os ambientes e ações são gravados com essa uniformidade que não tenta impor um significado direto ou óbvio a nada.
Talvez o diálogo com a personagem de Tilda Swinton seja a cena em que o filme mais se arrisca no sentido de tornar o drama menos prático e mais sugestivo, mas é algo que parte muito mais da construção da personagem dela. O protagonista, nessa cena, permanece em silêncio quase o tempo todo e a morte dela é simples e objetiva como as outras.
Apesar dessa uniformidade e pretensa impessoalidade na execução, com certeza existe um discurso implícito, um olhar particular sobre o mundo, na forma em que narrativa se organiza e em como o personagem guia as suas ações.
No fim das contas, o filme todo é uma espécie de evidência explícita do arquétipo contemporâneo de um homem liberal e imoral.
Diferente de um personagem atormentado de Paul Schrader, o protagonista aqui é tão anti-Dostoievskiano nessa ausência de culpa e de qualquer traço metafísico que o seu relato está mais para algo como as memórias objetivas de um sociopata que curte The Smiths.
Além de não possuir nenhum princípio moral e nunca dar o menor sinal de uma crise de consciência, o protagonista está totalmente submetido à lógica de um capitalismo contemporâneo, ultra urbano e tecnológico. O fato dele matar todos os outros trabalhadores do seu ramo e deixar o milionário das criptomoedas vivo é uma declaração evidente disso.
Esse visão liberal que não responde a nenhuma ordem metafísica (nem Deus ou moral) e possui somente uma relação materialista e concreta com tudo parece ser a tônica central do trabalho.