ANATOMIA DE UMA QUEDA (2023): Julgar e encenar

Justine Triet usa o drama de tribunal para refletir sobre o poder da encenação cinematográfica

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Uma escritora alemã, vivida por Sandra Hüller, é suspeita de ter assassinado o próprio marido após ele ser encontrado morto na frente da casa da família.

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A FILIAÇÃO AO DRAMA DE TRIBUNAL

Anatomia de uma Queda lembra muito Sibyl (2019), o longa anterior de Justine Triet, na forma em que o filme parte de uma premissa dramática para repensar procedimentos do cinema.

Ainda que, agora, a cineasta esteja pretensamente lidando com um gênero mais clássico como o drama de tribunal, esse movimento, em seu novo longa, é até mais conceitual do que no filme de 2019.

Triet usa muito bem as diferentes modalidades de reencenações, registros e testemunhos do contexto do tribunal para pensar sobre aspectos da encenação cinematográfica. Todo o julgamento e todas as dúvidas que envolvem a morte do marido da protagonista funcionam como premissa para uma desconstrução da narrativa e das intenções dos personagens.

É um filme que trabalha bem tanto com esse apelo de uma desconstrução direta dos códigos e dinâmica desse gênero, como também com um apelo comercial ligado a ele.

Além de propor esse movimento de subversão dos seus próprios dispositivos, todas as ideias básicas do suspense e da dúvida sobre a inocência da protagonista funcionam muito bem para, basicamente, prender o espectador na obra.

Para além do seu lado conceitual, Anatomia de uma Queda dialoga com o drama de tribunal clássico e também com algumas tendências televisivas em voga. E, ainda por cima, junta tudo isso muito bem a partir de escolhas formais que misturam uma abordagem convencional com um trabalho mais livre e ambíguo com a câmera e com a decupagem.

Desde a primeira cena, na visita da estudante, a câmera já perde o foco em alguns momentos e tudo soa espontâneo, documental e levemente experimental em certo sentido.

Durante o desenvolvimento da trama, na medida em que as reencenações, fragmentos de memória e até registros dentro do filme vão se infiltrando nessa abordagem, a câmera da realidade ficcional propriamente se torna mais ambígua e começa a variar entre um formalismo clássico e uma espécie de dinâmica realista de reportagem.

Existem movimentos de câmera no tribunal que corrigem o andar dos personagens ou seguem algum acontecimento de modo brusco (como o momento em que a juíza sai sem avisar) que lembram uma imagem televisiva; enquanto que, em outros momentos, a decupagem segue uma suavidade clássica e discreta.

O fato desse contraste entre abordagens ser pontual e não tão perceptível torna essa desconstrução mais natural. Quando certos planos se iniciam, não sabemos se a imagem seguirá uma abordagem rígida ou se tornará mais instável até o desenvolvimento da cena.

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VARIEDADE DE FORMATOS E OLHARES

É interessante, também, como o filme reflete sobre ideias de encenação e reencenação a partir de fragmentos de uma variedade de formatos de mídia e regimes ficcionais: áudio, flashback, texto transcrito, trechos de livros da personagem, imagem 3d, maquetes da casa, etc.

Isso reforça a ideia de que qualquer vestígio pode ser explorado, ampliado e até oportunamente ressignificado em uma nova versão dos fatos. Dentro dessa lógica de provas ambíguas do julgamento, a junção desses elementos oportunos é utilizada para performar novas possibilidades de encenação.

Outro aspecto ambíguo que Triet trabalha muito bem na mise-en-scène é uma relação incerta do ponto de vista do espectador que a câmera e a montagem reforçam.

Além de alguns flashbacks “falsos” que mostram possíveis versões do acontecimento, o modo como ela varia os ângulos e enquadramentos dos planos no julgamento nunca cria uma empatia por personagens específicos.

Essa empatia existe, mas ela nasce mais das performances do que qualquer coisa. Como a câmera está sempre fragmentando o espaço com essa variedade de composições, o aspecto humano se torna decisivo.

Até a maneira como a montagem corta o flashback da briga do casal na cozinha para o áudio no tribunal apenas para não mostrar o final violento do embate entre os dois dialoga com essa ideia do filme colocar o espectador em uma posição sempre ambígua e de incerteza ao mesmo tempo que assume essa manipulação.

Os únicos momentos em que existe uma espécie de transparência são os momentos familiares. Os planos na casa são os mais diretos e a relação com o filho nunca coloca em dúvida o amor da mãe. Como se, na casa, o filme deixasse de lado essa desconstrução e fragmentação e se focasse em um afeto incondicional que preenche tudo.

O tribunal, desse modo, é colocado como o lugar de encenar, como se fosse um set de filmagem ou um palco que relocaliza e reinterpreta todo tipo de matéria-prima apresentada para o júri, já a casa e a família representam o único local em que a realidade imediata de fato se mostra segura das suas intenções.