Martin Scorsese rejeita tom épico e prioriza a presença de seus personagens em cena
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Baseado no livro homônimo de David Grann, Assassinos da Lua das Flores (2023) narra os assassinatos que aconteceram na tribo indígena Osage na década de 1920, em Oklahoma, após a descoberta de petróleo na região.
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Apesar de Assassinos da Lua das Flores (2023) partir de um projeto ambicioso, o longa é, no bom sentido, bastante simples e direto ao ponto. Ainda mais se formos pensar na grandiosidade e no tom épico de alguns outros filmes de Martin Scorsese.
O diretor, neste atual trabalho, está muito mais focado nos personagens e em como a relação entre eles evidencia, de modo mais intimista, aspectos do tema que está lidando do que em abordar esse tema grandiosamente.
Ainda existe um certo elemento épico, principalmente quando Scorsese mostra o efeito e a gravidade dos crimes envolvidos na trama, mas isso nunca é colocado como algo visualmente exagerado ou apelativo.
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ENTRE O WESTERN E O FILME DE GÂNGSTER
Mesmo o modo como o cineasta propõe um casamento entre o western e o filme de gângster herda os aspectos mais intimistas de cada um dos gêneros.
Do western, Scorsese tira uma atmosfera desoladora e um aspecto de terra de ninguém que perpassa a história. Uma sensação de cidade sitiada e submissa às suas próprias regras. Algo que pode ser igualmente reconfortante ou angustiante para os personagens, dependendo de suas situações.
E do filme de gângster, o diretor tira o jogo de intrigas e a violência crua e fria que perpassa a narrativa.
A partir desse possível minimalismo e dessa abordagem mais direta, Scorsese até evita romantizar a violência como já fez em alguns filmes. Ou, pelo menos, evita vibrar com ela da mesma forma que fazia em outros trabalhos.
Não que houvesse problemas em como o cineasta trabalhava com a violência em suas obras anteriores, ele sempre soube articular muito bem uma violência impositiva dentro de uma jornada catártica dos personagens, mas fica claro que diretor aborda essas práticas, agora, com certo distanciamento.
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A PRESENÇA DOS PERSONAGENS
No lugar de uma abordagem grandiosa com a história e de uma violência explícita, Scorsese se foca em um drama muito mais direto, quase teatral em certo aspecto, e na força da presença de seu elenco.
Este é um filme que poderia cair na tentação de tentar dar conta de todos os aspectos dos acontecimentos reais envolvendo seus fatos, de mostrar um número maior de personagens e evidenciar mais a motivação deles, mas a obra recusa tudo isso para se focar em um núcleo específico de personagens.
Nesse ponto, os personagens funcionam como uma espécie de representação individual e relativamente contida de temas complexos.
Lily Gladstone, com a sua aparência misteriosa, desconfiada e pouco acessível, é a imagem dos Osage. Mesmo a sua morte lenta é uma representação dessas mortes.
Já os personagens de Robert De Niro e Leonardo DiCaprio encarnam dois lados do homem branco “civilizado”: o totalmente desonesto e o relativamente ingênuo.
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ESTÉTICA DO CONFRONTO
As escolhas de decupagem também reforçam essa ênfase maior na interação entre os personagens. Scorsese faz planos médios que destacam o confronto dramático entre o elenco e sempre prioriza planos de reação.
O cineasta também move a câmera menos do que o normal, já que dá mais atenção para o que os personagens apresentam por eles mesmos. Em algumas cenas, até os cenários parecem propositalmente vazios ou pouco visíveis para que essa relação entre os personagens seja o foco.
Nas cenas do presídio, no final, esse pouco destaque dos cenários é bem evidente. As celas, no escuro, lembram mais o palco de uma peça do que o cenário de um filme.
É bastante revelador que, em uma das cenas-chave do filme, quando o personagem de DiCaprio rompe com o seu tio entre as grandes, o cenário ao redor seja escuro, pouco expressivo e a atenção esteja na presença dos dois.
A boa atuação de Di Caprio torna esse e outros momentos ainda mais poderosos. O ator consegue encarnar aquele tipo com alguns trejeitos específicos sem soar forçado.
O modo como ele nunca está com a postura ereta e olha tudo com os olhos baixos nas primeiras cenas já demonstra uma disposição verossímil muito importante para um trabalho que segue os preceitos de um naturalismo clássico ao pé da letra.
Lily Gladstone também se adequa muito bem a esse naturalismo. Em alguns momentos temos a impressão que o aspecto contido dela irá se transformar em um artifício fácil, mas ela sempre eleva o tom dramático na hora certa.
A doença da sua personagem nunca cai em um melodrama simplista e retrata bem uma espécie de decomposição que tem origem física, mas que também funciona como a consequência direta desse contato próximo com a podridão dos outros protagonistas.
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O EPÍLOGO
O epílogo do filme, apresentado no formato de um show de rádio, é outro ótimo indício dessa motivação menos épica do diretor. Nem os personagens mais estão presentes e a nossa relação passa a ser diretamente com a narração e não com os fatos encenados.
A presença do próprio Scorsese atesta o aspecto menos épico do projeto como um todo. Como se, ao se revelar, ele quebrasse um pouco a ordem natural do espetáculo e apontasse para o teor histórico da narrativa que acabou de mostrar.
O que é um movimento bem arriscado, já que sua fala poderia soar apenas como um mero “discurso importante” para além dos apelos narrativos, mas é algo que funciona justamente porque é totalmente assumido como um discurso que rejeita os apelos cinematográficos óbvios de um grande clímax.