O EXORCISTA: O DEVOTO (2023): A utopia do bem

Em terror ágil, David Gordon Green explora a fé como uma força coletiva

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Após duas garotas desaparecerem por três dias, elas reaparecem e demonstram sinais de uma possessão demoníaca que remete ao mesmo comportamento de Regan MacNeil, a criança possuída do filme O Exorcista (1973).

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UMA ESTRUTURA ÁGIL

O Exorcista: O Devoto segue a mesma abordagem dos filmes da trilogia Halloween, do mesmo David Gordon Green, principalmente no sentido do longa equilibrar o aspecto sobrenatural com uma caracterização mais realista. Porém, aqui, o estilo do cineasta é mais direto e dinâmico.

A agilidade da obra, inclusive, nos passa a impressão que David Gordon Green ficou maratonando os últimos filmes de David Fincher para compor um fluxo de acontecimentos velozes em que cada imagem evidencia uma informação pelo mínimo tempo necessário.

Muito do drama, principalmente no primeiro ato, é baseado em cortes rápidos e elipses bruscas. Algo que Green até já trabalhava em seus filmes da trilogia Halloween (o primeiro filme, principalmente, possui essa dinâmica rápida na montagem), mas que aqui está melhor integrado com o drama e com o suspense.

Toda a sequência do desaparecimento das meninas, por exemplo, concebe uma sensação de tensão e melancolia muito densa sem perder o seu ritmo veloz.

O primeiro ato, como um todo, talvez dialogue mais com uma ideia de suspense do que de terror, mas ainda funciona muito bem dentro da proposta realista e objetiva do cineasta.

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A ESTILIZAÇÃO QUE INTEGRA O ASPECTO EMOCIONAL

O modo como Green explora os closes e a baixa profundidade de campo na fotografia dessas sequências velozes também remete a trilogia Halloween, mas agora seus planos estão menos enfeitados e mais funcionais.

São planos que usam da estilização para integrar algum elemento emocional ou narrativo específico: os dias e noites que se misturam na cabeça dos pais preocupados, os olhares e expressões dos coadjuvantes, alguns detalhes sombrios dos cenários e locações.

Os momentos de possessão podem não ser tão gráficos, mas possuem uma construção de cena que também se beneficia dessa agilidade e dessa relação entre estilização e emoção.

As ações das garotas possuídas são bruscas, o que torna as reações dos outros personagens bem espontâneas. Não é como no filme original de William Friedkin em que o processo de possessão era algo arrastado e penoso. Aqui é algo rápido, confuso e, muitas vezes, público em como as crises das garotas são expostas.

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A FÉ COMO UMA COMOÇÃO COLETIVA

No geral, é um filme que lida com uma noção de coletividade (novamente presente na trilogia Halloween) que também não estava no longa de Friedkin. Apesar do personagem de Leslie Odom Jr. ser o protagonista, o drama nunca é centrado apenas nele.

Existe todo um grau de envolvimento de terceiros — os pais da outra garota, os vizinhos, as igrejas — bem específico. Como se o trauma fosse melhor integrado a partir dessa comoção com o outro. Toda a jornada do pai ateu também dialoga com essa ideia de se abrir para os outros e, consequentemente, para as ideias religiosas.

Nisso, o longa remete um pouco ao cinema de Wes Craven. Uma das coisas mais essenciais que os filmes novos da franquia Pânico não conseguiram captar, e que Green consegue intuir aqui e na trilogia Halloween, é esse senso de união frente um destino fatalista.

Nesse filme, isso funciona até como tema central. Mesmo a tragédia no final só existe porque o outro pai foi egoísta. O demônio vence porque essa união foi quebrada.

O ato final se arrisca bastante quando tenta juntar o elemento de coletividade com uma ideia mais desconstruída que, teoricamente, integraria religiões distintas.

Nesse sentido, o filme poderia ter seguido um caminho panfletário gratuito, mas no fim das contas o ritual final vira uma espécie de evento “Dama na Água (2006) para crentes”: todos os atos e tradições são levados a sério, por mais heterogêneo que tudo se apresente e por mais caricatos que esses atos sejam.

Até o fato de alguns personagens específicos, como a vizinha enfermeira que desistiu de se tornar freira, exercerem um papel que tem relação com o destino de tudo lembra certas obras de M. Night Shyamalan. Como se o divino se mostrasse nas horas mais reveladoras, mesmo que através de escolhas e relações banais e circunstancias.

O ritual final, na verdade, sintetiza bem várias ideias do filme como um todo. Ele celebra a coletividade e a fé dentro de um espaço comum e realista. Tudo acontece em uma sala apertada, com os personagens amontoados, e não em um quarto com pé-direito alto e uma cama de madeira estilosa como no longa de Friedkin.

É compreensível que o ritual final possa parecer algo tosco para algumas pessoas, mas é uma cena que faz todo sentido dentro dessa lógica de integrar a fé e o divino em um ambiente que é, ao mesmo tempo, contemporâneo e trivial.

O fato do cômodo ser pequeno também cria uma ótima oportunidade para Green explorar os seus closes. E, no fim das contas, mesmo com todo o “papo de crente”, o demônio sai como vencedor, já que o outro pai cai na conversinha do cão.

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O BEM COMO UMA UTOPIA

Essa derrota também reforça o tom negativo da trilogia Halloween e da abordagem de Green de maneira geral. Todas as vitórias da trilogia anterior eram vitórias resignadas e melancólicas. O bem prevalece muito mais como uma ideia utópica a ser sempre preservada do que como um elemento concreto que os personagens celebram.

Como se os filmes da trilogia Halloween, e esse O Devoto ainda mais, defendessem uma atitude de que a fé não deve depender da certeza de que o bem irá sempre vencer o mal (inclusive, está perdendo no placar geral), mas do bem como algo que deve ser preservado, ainda que utópico em seu estado absoluto, como o único caminho natural possível.