AFIRE (2023): Alienação mórbida

Christian Petzold contrasta uma magia cotidiana com o ressentimento de seu protagonista

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Leon, um jovem escritor, vai passar férias em uma casa próxima do Mar Báltico. Nesse ambiente, sua arrogância se evidencia na medida em que ele não consegue se conectar com as outras pessoas.

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Apesar de Afire ser um filme centrado em uma realidade muito imediata dos seus personagens (a filiação ao cinema de Eric Rohmer é bem evidente desde o início), é interessante como existem detalhes no longa que passam a sensação de que os indivíduos estão em uma dimensão paralela.

Na maior parte do tempo, por exemplo, só vemos a casa de férias e um certo pedaço da praia. Nunca temos uma visão ou noção mais completa dos espaços que os personagens transitam. Além disso, em teoria, ainda existe uma floresta à beira de pegar fogo que sempre soa distante.

As cenas noturnas, por sua vez, possuem um azul artificial que dá impressão que os personagens estão em outro planeta. Já a figura de Paula Beer, quando vista pelos olhos de Leon, o protagonista, é uma espécie de aparição onírica hitchcockiana.

Nesse sentido, o mundo rohmeriano de Petzold atua como um pequeno universo isolado que remete a obras anteriores do cineasta, principalmente no sentido dos seus dramas geralmente passaram a sensação que acontecem em uma realidade diferente da nossa.

Leon, desde o início, se mostra constantemente deslocado dessa realidade particular. Além de estar sempre alienado nas suas próprias preocupações e mal estabelecer uma conexão com os outros, ele tem o figurino mais anti-rohmeriano possível, já que se veste com trajes escuros e sem vida.

Não é por menos que ele seja o protagonista. Como é de praxe em algumas obras do cineasta, o personagem principal é um ser alienado pela sua própria consciência e os conflitos nascem da sua relação conturbada com aquela realidade específica.

A transgressão entre tempo e espaço, aqui, pode não ser tão radical como em outras obras de Petzold, mas o modo como as escolhas de direção evidenciam a distância de Leon com os outros e também evidenciam a sensação de que a casa está isolada de qualquer coisa já passa a ideia de que tudo se encontra em um estado transitório e pouco confiável.

No ato final até existe a impressão que o filme vai assumir alguma sugestão fantástica, mas ele ainda preserva esse realismo particular. A cena na praia, quando o Leon e a Nadja discutem, é um momento que serve para frustrar essa impressão.

Além da cena mostrar a praia a partir de uma perspectiva mais ampla, com planos mais abertos e uma fotografia bem pouco romantizada, ela evidencia ainda mais a frustração de Leon em relação à personagem de Beer no modo em que a conversa termina.

Como se a própria natureza de Leon, ao rejeitar o acesso a qualquer mundo, também se recusasse a viver qualquer momento de magia, ou qualquer possível catarse alegórica, sentimental e fantasiosa.

Nesse sentido, Afire é, essencialmente, um filme sobre a falta de vida. A patologia do personagem patologiza tudo e todos ao seu redor e impossibilita qualquer resolução mágica.

O seu ressentimento é uma espécie de presença mórbida que contamina tudo e todos. O fato da morte rondar o ato final em relação aos acontecimentos e pessoas do círculo de Leon também dialoga com essa ideia.

O epílogo do filme, se por um lado sugere uma possível recuperação da humanidade de Leon, por outro não confirma nada e preserva uma mesma distância entre ele e a figura da Nadja.

Ele ainda é colocado como um espectro à parte do ambiente. Talvez mais consciente de tudo, mas ainda uma presença que não pertence ao lugar em que se encontra.