BEAU TEM MEDO (2023): Peregrinação para dentro de si

Ari Aster parte de uma estrutura convencional para propor elementos bizarros que atormentam seu protagonista

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Um homem chamado Beau Wassermann, interpretado por Joaquin Phoenix, parte em uma jornada conturbada até a casa de sua mãe.

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UMA JORNADA CLÁSSICA

Beau tem Medo está mais para um filme que preserva uma jornada clássica e objetiva que, durante o seu trajeto, se depara com personagens excêntricos e subtramas particulares, do que para um filme de teor radical ou experimental.

O longa, de modo geral, possui uma proposta bem mais tradicional do que está sendo vendida pelo seu marketing ou até sendo discutida por parte da crítica.

Uma proposta tradicional tanto no sentido da obra explorar as tradições clássicas do retorno do filho pródigo e do arquétipo do filho judeu, como também no fato da estrutura, no fim das contas, seguir uma linearidade dramática sobre as descobertas pessoais do protagonista.

A maneira que Ari Aster caracteriza vários aspectos da obra nunca é totalmente comum, mas existe sim um rigor específico e convencional no modo em que o filme progride. Além do objetivo concreto do personagem nunca mudar, o fato de todas as fases da jornada serem tão bem divididas reforça uma evolução característica do trabalho.

O filme começa com elementos urbanos bizarros que podem soar aleatórios, mas existe um ritmo muito preciso em como tudo surge e, principalmente, existe uma precisão na maneira que as situações excêntricas obrigam o personagem a se manter sempre em movimento.

Depois disso, em um núcleo envolvendo os personagens de Nathan Lane e Amy Ryan, as ações são abordadas assumidamente de modo mais isolado e menos caótico. A casa organizada e o ambiente familiar, nestas sequências, possuem uma solenidade (mesmo que falsa) que contrasta com o começo conturbado.

Mesmo a formalidade excessiva do casal, vivido por Lane e Ryan, dialoga com a ideia de uma família americana que maquia as suas disfuncionalidades, mas que, ao mesmo tempo, deixa tudo escancarado.

Toda a sequência na floresta, que dialoga abertamente com ideias de mitos e com aspectos inconscientes que vão sendo concretizados, até pode ser mais expansiva em termos narrativos, mas é limitada a um espetáculo dentro do filme que dispara as ideias mentais e rejeita uma deambulação totalmente aleatória.

A parte final, com Patti LuPone e Parker Posey, vai para um lado dramático em que o confronto com a mãe e com a amante (figuras oportunamente espelhadas) acontece tanto de modo lento e realista (no interior da casa) como de modo alegórico (o sótão, o julgamento final), porém a partir de uma clara progressão dramática que visa o autoconhecimento, ainda que por vias traumáticas, de Beau.

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O IMAGINÁRIO CULTURAL DO TRAJETO

É claro que, no meio de todas essas situações, existem elementos excêntricos que podem soar gratuitos para alguns espectadores, mas são elementos específicos que dialogam diretamente com cada um desses pequenos universos que o protagonista encontra em sua jornada e nunca situações aleatórias.

Inclusive, a construção desses universos gera a impressão de que Ari Aster escreveu os personagens especificamente para um cada um desses atores.

Ou, pelo menos, passa a impressão que o cineasta fez um casting absurdamente bom quando estava com o roteiro pronto. São situações em que os personagens não dialogam bem somente com a persona desse elenco, mas até mesmo com o histórico artístico dos atores e das atrizes em cena.

A simples presença de Nathan Lane, por exemplo, já reforça o dispositivo teatral daquele núcleo que ele inteira. No final, Parker Posey e Patti LuPone também ressignificam a cena a partir de aspectos diretamente relacionados a quem elas são, papéis que já interpretaram ou ao que suas figuras representam no imaginário cultural.

É como se o filme propusesse, a partir do elenco e desses pequenos mundos, uma certa viagem por algumas possibilidades de representação nas artes performáticas e cinematográficas dos Estados Unidos.

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UMA ESTÉTICA OPRESSIVA

Outra característica interessante do longa é a maneira que Aster nunca cai na tentação de tornar esses pequenos mundos meramente estimulantes de modo gratuito. O filme não se utiliza dessas constantes aparições e novos cenários para se manter dinâmico ou acelerado da maneira apelativa.

Pelo contrário, ele fica cada vez mais lento na medida em que apresenta nova circunstâncias. O longa abre com uma situação enérgica imprevisível e fecha com um drama de câmara freudiano.

É uma estrutura em que as situações vão se tornando cada vez mais opressivas e não expansivas ou libertadoras.

O personagem nunca irá se libertar da prisão que sua mãe criou; ele vai, literalmente, implodir dentro dela. O estádio, no julgamento final, está mais para um útero gigante que Beau finalmente voltou do que qualquer outra coisa.

As escolhas estéticas dialogam muito bem com isso. Principalmente pelo modo como as cenas externas nunca parecem que são, realmente, externas (quase tudo soa como um estúdio claustrofóbico).

Além disso, a câmera está sempre muito perto do protagonista nas suas crises e os cenários estão sempre carregados de elementos, o que os torna bastante artificiais.

O único cenário que é um pouco mais limpo é o da casa, no final, mas que também é um lugar que possui uma arquitetura contemporânea que torna os seus ambientes confusos e possui um jogo de iluminação bem mais sombrio.

Ainda que a proposta do filme soe expansiva, a viagem é sempre uma descida visceral do protagonista para dentro de si.

Ari Aster mostra muito desenvoltura em toda a organização dramática desse trabalho e nos oferece um longa que desafia convenções de gênero e dialoga com diversas tradições dramatúrgicas de modo muito inventivo.