Todd Field apresenta olhar clínico sobre uma crise de valores artísticos
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O RETRATO DE UM VAZIO CONTEMPORÂNEO
Além de remeter a um cineasta como Michael Haneke em sua abordagem rigorosa com o drama e com a câmera, Tár (2022) lembra um pouco os filmes de Olivier Assayas no modo em que usa aspectos contemporâneos do ambiente cotidiano (arquitetura, decoração, dispositivos tecnológicos, etc.) como um comentário direto sobre a relação dos seus personagens com o mundo.
Nesse caso, isso é ainda mais oportuno porque o filme contrasta esse mundo de uma intelectualidade erudita com a praticidade de um contexto urbano de grandes capitais e, principalmente, com uma impessoalidade estética e uma falta de valores que contamina tudo.
As cenas em restaurantes e cafés de luxo são muito boas nesse sentido. Tudo possui um tom monocromático e sem vida (dos objetos de cena aos figurinos) enquanto os personagens discutem temas muito específicos que vão da política de certas instituições de arte a detalhes da vida e obras de grandes compositores.
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A DESCARACTERIZAÇÃO DA ARTE
O comentário geral de Todd Field, nesse seu novo trabalho, não está apenas nessa questão do cancelamento e da especulação de qualquer ato (público ou íntimo) nos dias de hoje, mas também de como a apreciação e a vivência com a arte passa por um ritual de descaracterização.
Lydia Tár possui uma opinião sobre tudo, possui um conhecimento artístico e uma sensibilidade muito bem articulada, mas descarta qualquer experiência estética legítima com o mundo. Em termos práticos, ela é uma executiva. Age mais como a CEO de uma empresa do que a regente titular de uma orquestra.
As escolhas estéticas de Field passam a sensação de um mundo que, intelectualmente falando, entendeu as grandes mentes que já passaram por aqui, mas na prática foi contaminado por uma lógica liberal que sempre precisa estar com a carreira avançando.
Um mundo que entendeu as intenções artísticas daquilo que aprecia, mas que ignora os seus valores essenciais.
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O RIGOR DA DIREÇÃO
Falando em termos mais técnicos em relação à dinâmica das cenas, o diretor passa muito bem uma sensação impessoal quando prioriza planos gerais fixos que captam a relação homogênea entre os personagens e o espaço.
Ninguém se destaca em nenhum lugar porque todos se vestem da mesma forma e usam as mesmas cores sem vida. Tudo é inflexível e inerte. Não é por menos que o inconsciente da personagem compensa isso com a presença da água e de formas maleáveis nos seus pesadelos.
Ainda assim, quando a câmera se move, Todd Field consegue manter Lydia Tár como o centro de tudo sem evidenciar demais a sua figura.
O plano sequência que mostra a protagonista dando aula e esculhambado o aluno woke é um dos melhores exemplos disso. Ela se movimenta pela sala junto com o plano enquanto o blocking e as relações entre o que está próximo e longe da câmera reafirmam, de modo sutil, a sua posição de poder e manipulação.
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O TOM INUSITADO DE CATE BLANCHETT
Cate Blanchett também segura tudo muito bem nessas cenas mais longas. Apesar da sua personagem soar como uma sabe-tudo meio escrota, Blanchett consegue propor um tom espontâneo mesmo quando o texto, por si só, poderia soar truncado ou muito teatral.
Aliás, muito do humor do filme provavelmente se deve a esse tom de Blanchett. A atriz tem um timing de reação muito específico nas cenas de diálogos e discussões. Até quando toca em temas pesados, tem uma leveza inusitada.
Mesmo quando alguns acontecimentos na trama soam bruscos ou pouco explorados (como a traição da personagem de Noémie Merlant ou mesmo o ataque de Tár ao outro regente), a presença de Blanchett torna o contexto mais natural.