MARTE UM (2022): Cinema em família

Gabriel Martins alia convenções do drama com olhar pessoal sobre seus personagens

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Entre os trabalhos da Filmes de Plástico que eu assisti, Marte Um (2022) é um dos que melhor integra o elemento espontâneo das ações, dos diálogos e das atuações, com os acontecimentos dramáticos.

A dinâmica documental e direta de um registro cotidiano está bem presente, mas tudo é melhor conciliado com um roteiro relativamente convencional e até com uma moral familiar de tom edificante, mas nunca piegas.

A figura da mãe, inclusive, me parece bem mais interessante do que a de Deivinho. Ou pelo menos bem mais central nos acontecimentos dramáticos. Ela funciona como um núcleo ambíguo e intuitivo que absorve todas as tensões dos outros membros da família. Não é só a mediadora dos conflitos, é um canal psicológico que processa tudo aquilo, mesmo que de forma involuntária.

Essa jornada psicológica da mãe me lembrou muito A Mulher Sem Cabeça (2008), de Lucrecia Martel. Principalmente em como existe uma relação de estranheza da personagem com o espaço ao seu redor que, até certo ponto, é bem misteriosa, mas também é muito material pelo modo em que se apresenta no cotidiano. Não é algo que cai em um fetiche meramente metafórico como acontece em alguns trabalhos que se utilizam de recursos semelhantes.

Em termos estilísticos, é um filme que poderia ser um pouco mais criativo. Ainda que essa pegada cotidiana e o tom observacional justifique os planos estáticos e a decupagem econômica, algumas escolhas estéticas soam meio genéricas, principalmente quando ele sai do espaço da casa.

As cenas no condomínio, por exemplo, parece que existem apenas para registrar os diálogos e não a relação dos personagens com aquele lugar. Uma relação que é até bem reveladora dada a importância simbólica que aquele contexto demonstra.

Já nas cenas na casa ou que orbitam a casa, o filme encontra um ótimo equilíbrio entre um possível isolamento dos personagens (principalmente quando usa closes) e uma intimidade que a câmera revela quando deixa os objetos dos cômodos de fundo ou integra detalhes de modo mais minucioso.

A cena da mãe mostrando as fotos para o Deivinho, nesse sentido, é uma das melhores do filme. Além de apresentar esse momento leve e íntimo com um tom despretensioso que torna a cena muito terna, mostra uma integração mais profunda dos dois com essa raiz familiar que o filme nunca desconstrói totalmente. Pelo contrário até, está sempre reafirmando esse valor independente do contexto.

Marte Um (2022) é um ótimo exemplo de um filme que, apesar de deixar clara a sua vocação arthouse e independente, nunca se limita a ela e me parece até bem mais aberto do que a média dos filmes brasileiros quando se apropria de algumas convenções.

Uma coisa que, atualmente, faz muita falta no cinema brasileiro contemporâneo são filmes que se permitam esse trânsito. Filmes que tiram a sua força dramática de uma filiação pessoal e artística mas, ao mesmo tempo, lançam mão de recursos dinâmicos que tornam a narrativa acessível sem comprometer a sua profundidade. Gabriel Martins faz isso de modo exemplar.