PACIFICTION (2022): Suspense imersivo

Albert Serra usa o suspense para potencializar aspectos sensoriais do seu cinema

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Desconfio que Pacifiction representa na filmografia de Alberta Serra o que O Intruso (2004) representa na filmografia de Claire Denis.

São trabalhos que evidenciam uma radicalidade do método desses cineastas e, simultaneamente, potencializam um aspecto convidativo das suas abordagens. E ainda se utilizam de uma mesma paisagem isolada no Taiti como um potencial onírico que deslocaliza suas narrativas.

São filmes com elementos experimentais que atingem um equilíbrio muito difícil entre evidenciar um processo artístico extremo e, ao mesmo tempo, tornar esse processo algo sedutor e fascinante.

Boa parte dos filmes anteriores de Serra já se focam nessa relação imersiva entre os personagens e os locais em que eles se encontram. Os seus hábitos e gestos se tornam pequenos rituais espontâneos que dizem mais sobre eles do que a trama propriamente. São ações minuciosas que vão, aos poucos, nos envolvendo e nos hipnotizando.

E ainda que sejam filmes que lidam com grandes mitos ou personagens históricos, existe uma proximidade e um realismo muito sutil nessa relação com a intimidade das figuras em cena. Existe, até mesmo, uma espécie de banalização (no bom sentido) dessas figuras. Elas se tornam pessoas espontâneas e até certo ponto comuns.

Aqui, em Pacifiction, essa ambiguidade ainda é preservada. A trama e os personagens, apesar de pertencerem a um mundo contemporâneo, nos passam a sensação de um sonho distante. Enquanto que os diálogos e as ações nos aproximam da intimidade daquelas pessoas na medida do possível.

A obra, então, consegue lidar com essas duas chaves de representação. Na trama, ela localiza alguns personagens de modo realista. E até revela uma intimidade deles de maneira minuciosa. Enquanto que, no decorrer da narrativa e no uso inspiradíssimo das elipses, eles também surgem como fantasmas ou aparições.

A principal diferença, agora, é como Serra parece bastante empenhado em flertar com algumas ideias de suspense. A estrutura e a atmosfera do filme (também aos moldes de grandes trabalhos da Claire Denis) vão para esse lado de filme experimental de espião que torna o projeto sedutor.

Ou, ainda, o modo como ele vai para esse lado de um thriller que está sempre engatilhado e nunca de fato se concretiza, já que está mais interessado nas modulações sensoriais desses flertes do que nas suas resoluções, também faz com o que filme lide com apelos universais.

Quando o longa se aproxima do final, especificamente, certos personagens (como o norte-americano e português) se assumem como entidades enigmáticas que respondem muito mais a essa atmosfera de thriller que nunca inicia do que a um papel ativo claro. A maneira como a montagem se intercala entre diálogos longos e cenas que funcionam como viagens audiovisuais ajuda tanto nessa variedade de construção dos personagens como também na relação experimental com o cinema de gênero.

No momento em que você pensa que entendeu o papel de alguém, o filme vem com outro momento sugestivo que confunde todas as relações a partir de uma ideia de possíveis intrigas e mentiras que pairam pela superfície de tudo. É um filme, na verdade, cheio de paradoxos muito reveladores. Quanto mais calmo ele soa, mais ameaçador ele se apresenta. Quanto mais tranquilo os personagens se mostram, mais perdidos eles se encontram.

A fotografia, ao usar a textura cristalina do digital para reforçar as cores e trabalhar com um aspecto fosco das luzes altas, contribui muito bem para todo esse clima. É uma fotografia digital-hitchcockiana no melhor sentido que isso possa ter. O gosto de Serra por composições fixas e planos que nos localizam de modo claro no ambiente também dialoga com a abordagem controladora de Alfred Hitchcock.

Ele também remete muito a maneira que David Lynch faz imagens com uma força sensorial que, em vários casos, estão carregadas com o peso de uma herança de cinema clássico.

As imagens dos filmes de Lynch podem não estar dentro de uma estrutura narrativa clara (ou até coerente), mas possuem tanto um virtuosismo técnico digno de Hollywood (principalmente em Cidade dos Sonhos e Estrada Perdida) como também são guiadas por um imaginário clássico (o noir, o romance, a própria fabulação envolvendo Los Angeles e o legado do cinema).

Aqui, Serra também reverencia esse virtuosismo, reverencia esse aspecto tradicional de uma decupagem com composições clássicas e personagens que se adequariam a certos arquétipos do cinema de gênero. Porém tudo fica nesse limite de representações, nesse estado de sugestões e aparições.

Nunca existe nada de muito palpável guiando tudo. Tanto a premissa do plot como algumas ideias sobre colonialismo funcionam mais como pistas que ele vai jogando em uma narrativa sem referencial propriamente definido. O único referencial talvez seja essa busca dos personagens por sensações.

O protagonista, no fim das contas, nunca consegue resolver nada, mas está sempre imerso nas sensações que todas as situações proporcionam. Um ótimo paralelo com a relação do próprio espectador com o longa.