Alberta Serra propõe abordagem radical ao mesmo tempo que flerta com o cinema de gênero
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Um oficial do governo francês, chamado De Roller, investiga rumores de testes nucleares franceses na região da Polinésia. O filme segue o dia a dia desse protagonista no Taiti a partir de uma abordagem imersiva enquanto ele interage com diversas pessoas e explora diferentes espaços.
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UMA NARRATIVA EM SUSPENSÃO
Talvez Pacifiction (2022) represente, na filmografia de Alberta Serra, o mesmo que O Intruso (2004) representa na filmografia da francesa Claire Denis.
São trabalhos que evidenciam uma radicalidade do método desses cineastas e, simultaneamente, potencializam um aspecto convidativo das suas abordagens. Além disso, ambos se utilizam de uma mesma paisagem isolada no Taiti como um potencial onírico que desafia uma estrutura narrativa convencional.
Os dois filmes possuem elementos experimentais que atingem um equilíbrio muito difícil entre expor um processo artístico extremo e, ao mesmo tempo, tornar esse processo sedutor e fascinante para o espectador.
Boa parte dos filmes de Serra já se focam na relação imersiva entre os personagens e os locais em que eles se encontram. Os hábitos e gestos dos personagens de longas como História da Minha Morte (2013) e Honra de Cavalaria (2006) se tornam pequenos rituais cativantes que valem por si e nunca contribuem para a trama propriamente.
Nestas obras, tudo é mediado por ações minuciosas que vão, gradualmente, nos envolvendo e nos hipnotizando.
Ainda que sejam filmes que lidam com grandes mitos ou personagens históricos, existe uma proximidade e um realismo muito sutil na concepção da vida íntima das figuras em cena. Existe, até mesmo, uma espécie de banalização (no bom sentido) dessas figuras. Elas se tornam pessoas espontâneas e até certo ponto triviais.
Em Pacifiction, essa ambiguidade e esse gosto por gestos banais e envolventes não é somente preservado, como também atinge um certo ápice sensorial em seus desdobramentos.
A trama e os personagens, apesar de pertencerem a um mundo real e contemporâneo, nos passam a constante sensação de um sonho distante. Os diálogos e as ações nos aproximam, em certa medida, da vida prática daqueles indivíduos, mas a narrativa propriamente está sempre em um estado de suspensão em que nenhuma motivação fica clara.
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DUAS CHAVES DE REPRESENTAÇÃO
O longa, de modo geral, lida com duas chaves de representação muito específicas. Uma que diz respeito ao cinema experimental e outra que diz respeito a códigos do cinema de gênero.
Pacifiction transforma seus personagens em espectros que vagam por aquele cenário idílico, como também os aborda como peças enigmáticas em um filme de suspense que nunca compreendemos por inteiro.
A estrutura e a atmosfera do filme — também aos moldes dos grandes filmes de Claire Denis — vão para um lado experimental nessa modulação mística do tempo e do espaço, mas certos acontecimentos pontuais sugerem que estamos diante de um filme de espião.
Quando a obra se aproxima do final, especificamente, essa mistura se torna mais intensa. Certos personagens (como o norte-americano e o português) se assumem como entidades enigmáticas que respondem a essa dinâmica de thriller que nunca inicia.
A maneira como a montagem se intercala entre diálogos longos e cenas que funcionam como viagens audiovisuais ajuda nessa elaboração. Quando você pensa que entendeu o papel de alguém, o filme oferece outro momento sugestivo que confunde todas as relações a partir de uma ideia de possíveis intrigas e mentiras que pairam pela superfície de tudo.
É um filme cheio de paradoxos reveladores. Quanto mais calmo ele soa, mais ameaçador ele se apresenta. Quanto mais tranquilo os personagens se mostram, mais perdidos eles se encontram.
Nunca existe nada de muito palpável nos guiando. Tanto a premissa do plot como algumas ideias sobre colonialismo funcionam mais como pistas que o cineasta vai jogando em uma narrativa sem referencial propriamente definido.
O protagonista, no fim das contas, nunca consegue resolver nada e está sempre imerso nas sensações que todas as situações proporcionam.
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UMA HERANÇA CLÁSSICA
Apesar dessa proposta experimental, é interessante como as escolhas formais de Serra são bastante rigorosas.
O gosto do cineasta por enquadramentos fixos e planos que nos localizam de modo claro no ambiente dialoga diretamente com uma abordagem controladora que remete a um cineasta como Alfred Hitchcock.
O diretor intercala muito bem uma decupagem metódica com uma abordagem mais livre com cores saturadas e luzes foscas que reforça um lado esotérico e experimental.
A fotografia usa frequentemente a textura cristalina do digital — o longa foi gravado com uma Blackmagic Pocket Cinema Camera, uma câmera que evidencia a textura digital de modo mais evidente do que outras câmeras profissionais — para reforçar as cores e trabalha com um aspecto fosco das luzes altas, contribuindo muito bem para todo esse clima.
É uma fotografia digital hitchcockiana que também remete muito a maneira que David Lynch faz imagens com uma força sensorial que, em vários casos, estão carregadas com o peso de uma herança de cinema clássico.
As imagens de um cineasta como David Lynch raramente estão dentro de uma estrutura narrativa clara, mas possuem tanto um virtuosismo técnico digno de Hollywood — principalmente em filmes como Cidade dos Sonhos (2001) e A Estrada Perdida (1997) — como também são guiadas por um imaginário clássico: o noir, o romance, a fabulação envolvendo Los Angeles e o legado do cinema.
Aqui, Serra também reverencia esse virtuosismo, esse aspecto tradicional de uma decupagem com composições clássicas e personagens que se adequariam a certos arquétipos do cinema de gênero.
Porém, tudo fica nesse limite de representações, nesse estado de sugestões e aparições em que as cenas funcionam tanto de modo isolado, como também constroem, aos poucos, uma experiência artística livre que se mostra fascinante e complexa.