SONNY BOY (2021) equilibra muito bem uma estrutura experimental com elementos narrativos tradicionais.
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Sonny Boy é uma série de anime sobre um grupo de estudantes que, sem motivo aparente, são transferidos para uma outra dimensão. Nessa dimensão, os personagens ganham poderes específicos e precisam seguir certas regras. Ao longo da série, eles transitam por outros mundos e encontram criaturas e personagens diferentes.
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A série começa como um anime sobre estruturas de poder que usa de diversos temas para falar sobre isso, incluindo economia, religião, organização social, etc. – e aos poucos se transforma em uma obra abstrata em que toda tentativa de sistematização fracassa.
Boa parte dos episódios até a metade são até bem didáticos (na medida do possível) nesse sentido. Principalmente em como cada um deles revela um lado daquele universo e, em resposta a isso, os personagens tentam assimilar e organizar tudo. Criam regras, diagramas e até apps para tentar achar uma saída ou, simplesmente, entender tudo aquilo de algum modo.
Como toda tentativa de compressão mais objetiva daquele mundo é frustrada, cada episódio, de certa forma, anula o anterior. É até engraçado como Shingo Natsume, o criador da obra, assume isso. A série cria toda uma atmosfera de grande descoberta e até alguns possíveis cliffhangers para depois ignorar tudo e se focar em um novo tema e em uma nova descoberta de modo isolado.
São episódios que, com certeza, se conectam e vão gerando um peso dramático tanto nessas frustrações mais objetivas como nas revelações dramáticas dos personagens, mas também possuem uma força independente muito poderosa.
Depois da metade, especialmente, o anime se apropria disso muito bem quando ignora uma possível linearidade mais clara da trama e, do nada, faz episódios isolados que ainda funcionam muito bem (ou até mais) que os episódios com os personagens que nós conhecíamos.
O episódio do cachorro é o melhor exemplo disso. Ele pega um personagem aleatório que surgiu do nada, reconta em um flashback a sua história de romance com uma possível Deusa e, basicamente, vira uma das coisas mais marcantes e tristes da série inteira.
Isso não deixa de ser um comentário sobre essa estrutura serial apelativa dos dias de hoje (principalmente da era pós Netflix) em que todos os episódios possuem uma relação de continuidade muito dependente que vai preparando o espectador pra uma grande revelação ou acontecimento impactante.
Aqui ele prova que, mesmo quando inventa um personagem aleatório e decide contar a história dele do nada em um episódio inteiro, consegue te engajar emocionalmente de um modo que não estava engajado com nenhum dos personagens até ali. Faz questão até de usar um personagem não-humano pra provar o seu ponto de modo ainda mais eficiente.
Todo aquele episódio dos macacos também demonstra essa habilidade do autor em tirar da cartola mitologias muito específicas que possuem sutilezas bem pessoais.
No fim das contas é uma grande obra sobre essa força autônoma das imagens e sensações. É verdadeiramente lynchiano nesse sentido. Não só em como sabe construir imagens visualmente muito expressivas a partir de premissas absurdas, mas em como consegue tornar essas imagens tocantes sem o devido contexto.
Mostra que sabe trabalhar muito bem com arcos dramáticos convencionais só pra depois aniquilar momentaneamente tudo e evidenciar a potência audiovisual dos seus temas por eles mesmos.
Não chega a abandonar totalmente o arco dramático porque sempre preserva a intenção original do protagonista, porém faz questão de nunca prender a sua estrutura a isso. Inclusive quando volta para algo mais convencional no último episódio, demonstra muito bem as possibilidades dessa transição.
Ainda que a sensação final torne o anime muito abstrato, no final ele vira uma espécie de drama romântico desolador à Haruki Murakami. Depois de mostrar todas as possibilidades sensoriais e dramáticas daqueles mundos que vão surgindo, depois de justamente tirar, também, um drama muito poderoso desse aspecto experimental, ele volta para uma questão realista pra fechar o seu ciclo conceitual.
Mesmo depois de, literalmente, viajar por diversos mundos dentro de uma noção temporal que nunca fica clara (se passaram dois mil anos para alguns personagens), o pseudo Shinji ali comendo sozinho no seu apartamento, tendo um emprego bosta e se sentido rejeitado por uma garota é absolutamente devastador.
Ou seja, fantasia e drama, experimental e tradicional, todos esses eixos extremos correspondem a uma mesma sensação de inadequação. É muito difícil encontrar uma obra que transite tão bem assim tanto por essas dinâmicas. Mais do que isso, que consiga misturar tão bem esses extremos e construir uma unidade e um apelo a partir disso.