Steven Soderbergh parte de premissas narrativas e formais instigantes, mas não desenvolve suas ideias até o final
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Kimi narra a história de Angela, uma funcionária de uma empresa chamada Amygdala, fabricante de um dispositivo de voz ao moldes do Amazon Alexa. Enquanto escuta o fluxo de dados de uma residência, Angela se depara com o som do que parece ser um assassinato. A partir disso, a protagonista, que sofre de agorafobia, deve sair de sua casa para tomar alguma providência.
O longa tem uma estrutura que lembra bastante Unsane (2018), do próprio Soderbergh. Ele começa com ideias interessantes, tanto em relação à premissa narrativa como ao conceito estilístico, mas depois da metade temos a impressão que o diretor desiste das duas coisas.
A abordagem com a narrativa ganha uma caracterização óbvia e forçada enquanto que toda a decupagem rígida se torna aleatória na tentativa de criar uma atmosfera instável que, pretensamente, refletiria os momentos de tensão.
Os trabalhos mais fracos dos últimos 10 anos de Steven Soderbergh, como Logan Lucky: Roubo em Família (2017) e A Lavanderia (2019), seguem uma lógica preguiçosa parecida. O diretor apresenta ideias interessantes, principalmente na forma em que repensa a dinâmica visual das situações, mas logo cai em um piloto automático.
Os bons exemplos desse período – Contágio (2011), A Toda Prova (2011) e Terapia de Risco (2013) – podem não ser obras-primas completas, mas são exemplos de um cinema de gênero que se utiliza muito bem das formas da realidade (cenários, objetos de cena, luzes) para construir uma tensão característica.
Eu diria que Soderbergh, devido a esse interesse pelo gênero e por aspectos formais que sempre interagem com os ambientes que os personagem se encontram, foi se transformando em uma espécie de Alfred Hitchcock da estética do streaming.
O cineasta realiza filmes que assumem a textura cristalina da alta definição do digital (a estética Netflix por excelência dos dias de hoje); lança mão de tramas relativamente novelescas – Terapia de Risco (2013) é uma releitura de Psicose (1960) aos moldes de uma novela mexicana; e se expressa visualmente muito bem através das formas e figuras que sugere pela sua estilização da fotografia – toda a relação com a baixa profundidade de campo em Terapia de Risco (2013) e Contágio (2011), por exemplo, é muito bem articulada com a atmosfera de alienação dos filmes.
Nos filmes mais fracos desse período nós até percebemos uma base inicial que parte dessas ideias, mas que geralmente é abandonada quando o conflito da trama busca uma resolução.
Todo o primeiro ato de Kimi, com a direção controladora e as composições visuais cuidadosas que se inspiram no espaço do apartamento e nos objetos que estão ali dentro, remetem a essas ideias.
No momento que a protagonista abandona esse ambiente, essa lógica é colocada de lado e o filme tenta se resolver com uma decupagem ágil (passa a usar muita câmera na mão e ângulos inusitados) e uma caracterização clichê (os capangas e toda o núcleo de vilões parecem ter saído de um filme de ação feito pra TV).
Conceitualmente, é um movimento que poderia fazer bastante sentido. Ainda mais se pensarmos na percepção da protagonista em relação ao mundo. Como sofre de uma agorafobia, ela abandona o espaço seguro e controlado do apartamento em que vive para se aventurar por um mundo desafiador. E mesmo a caracterização possui aspectos de uma comédia assumida que justificaria o seu tom exagerado.
Porém, na prática, o filme usa essas viradas (tanto a narrativa como a formal) mais como um modo de resolver de um jeito fácil e rápido todos os mistérios que ele cria até ali do que como um elemento que contribuiria para um tom grave que sugere desde o início.
O problema não está nem nessa virada de tom, já que é algo até espirituoso se formos levar em conta algumas situações específicas na resolução final dentro do apartamento. Mas em como isso não se conecta com uma pretensa seriedade que aponta no início.
Se essa virada fosse ainda mais marcada, e com escolhas mais específicas, talvez essa mudança de chave funcionaria dentro de uma perspectiva conceitual, ainda mais pensando em como essas últimas obras do cineastas se assumem como exercícios de gênero. No entanto, o filme parece ter receio de assumir aspectos mais caricatos que a abordagem mais livre, e cômica, que o ato final solicita.
Nesse caso, um longa como A Mulher na Janela (2021) se resolve de modo bem mais honesto. Não tenta vender uma possível seriedade sobre um tema contemporâneo e, desde o início, assume a potência dos seus exageros sem medo das consequências.