Em adaptação mais ambígua e menos realista, Matt Reeves explora as hesitações e patologias de seu protagonista
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Nesta nova versão de Batman, Bruce Wayne está em seu segundo ano atuando como o vigilante mascarado na cidade de Gotham. Ao investigar uma série de assassinatos praticados pelo vilão Charada, Batman e o comissário Gordon se deparam não apenas com uma rede de corrupção envolvendo altos cargos públicos, mas também com revelações que ameaçam a integridade da memória de Thomas Wayne.
A partir de uma abordagem estilizada já característica de seus trabalhos anteriores, Matt Reeves constrói o filme como uma espécie de pesadelo pessoal do protagonista. O cineasta deixa de lado um possível realismo que marcou os filmes dirigidos por Christopher Nolan e nos oferece uma adaptação mais subjetiva e ambígua.
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UMA ABORDAGEM ANACRÔNICA
Batman é um filme que se filia muito mais a Coringa (2019), do Todd Philips, do que aos filmes anteriormente realizados por Christopher Nolan. Estamos diante de uma obra muito mais interessada na patologia do personagem, em como a sua inadequação molda um mundo de alegorias e obstáculos simbólicos do que em estabelecer um pretenso realismo.
O mais interessante de Coringa (2019) e do filme do Reeves é que, apesar de serem trabalhos bastante focados no aspecto psicológico de seus protagonistas, eles não buscam uma relação tão verossímil com o mundo. Todo o espaço que os personagens percorrem soa mais como uma projeção amaldiçoada da realidade do que a realidade propriamente.
Mesmo a ambientação e a caracterização dos dois longas possuem aspectos anacrônicos nesse sentido. É difícil definir o tempo preciso em que as obras se passam, já que elementos de épocas diferentes coexistem de modo muito natural.
O Bruce Wayne de Matt Reeves mora em uma mansão que mais parece o castelo do Drácula, usa uma maquiagem que remete a cultura gótica dos anos 80, possui gadgets avançados típicos do mais recente James Bond e sua música tema é de um cantor grunge dos anos 90.
O filme não deseja situar o espectador em um tempo e um espaço totalmente definidos, mas se aproveita de um imaginário possibilitador – e até caricato em certo sentido (Robert Pattinson colocando óculos escuros para tomar café não é uma imagem nada sutil) – que reflete com expressividade um imaginário universal dos quadrinhos.
É inegável que o cineasta faz um filme sombrio e austero em sua seriedade dramática (a atuação traz um tom mais contido), porém a obra possui uma liberdade muito grande em transitar por tradições estéticas e figuras recorrentes que dialogam tanto com uma caracterização exagerada do imaginário dos quadrinhos como também com convenções do cinema noir e até mesmo da literatura hardboiled.
Ou seja, o diretor nunca renuncia o arsenal iconográfico pesado e até antiquado que seu personagem carrega. Ele não tenta distanciar o personagem de sua natureza burlesca. Pelo contrário, ele se utiliza de todos esses elementos anacrônicos para carregar ainda mais a figura do herói.
Vários dos aspectos que envolvem a caracterização e a ambientação – da maquiagem gótica e do figurino contemporâneo aos espaços que Bruce Wayne habita – servem para encobrir a humanidade do personagem. O fato de que, na maior parte do tempo, vemos Pattinson caracterizado como Batman e não como Bruce Wayne é bastante revelador nesse sentido.
É como se o aspecto humano do protagonista estivesse soterrado naquelas camadas, como se a sua verdadeira identidade permanecesse enterrada pelos elementos do imaginário sombrio que a orbitam. Na voz off lacônica do início do filme, o próprio protagonista afirma que, de algum modo, se perde entre suas impressões desde que se tornou um animal noturno.
Todas essas referências que o personagem carrega poderiam, facilmente, soar datadas. Ou poderiam, com certeza, ser exploradas de modo óbvio. Mas além de ressignificar esses elementos sem nunca rejeitá-los, Reeves insere novas possibilidades – o uso da canção do Nirvana é absolutamente propício – que transformam tudo isso em uma espécie de bagagem existencial que Batman carrega.
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O RATO COM ASAS
Essa abordagem anacrônica não busca, meramente, uma fidelidade aos quadrinhos, mas se apropria, justamente, do que de mais cinematográficos as HQs oferecem: a interação entre os personagens e o espaço que eles habitam. O modo como essa interação, mesmo visualmente falando, responde a uma definição muito maleável e possibilitadora de mundo é a grande tônica da visão do cineasta.
Em várias das narrativas de super-heróis (sejam filmes ou gibis propriamente), muito da atitude dos personagens é definida pela sua perspectiva da realidade, pela visão do mundo que o herói possui. Enquanto alguns, como Super-Homem, voam indiscriminadamente e possuem até uma espécie de graciosidade e humildade em suas atitudes, o Batman conserva uma dimensão muito mais terrena e maldita.
Além de não ter superpoderes, sua imagem geralmente é ligada a aspectos negativos (ou pelo menos mais ambíguos): um jovem playboy, um homem psicologicamente perturbado, um anti-herói que constantemente questiona suas escolhas.
Partindo dessa perspectiva, o filme do Reeves reforça outra imagem negativa, a do rato. O longa usa dessa imagem para situar o personagem, inclusive, em um nível abaixo da civilização. Algo que além de rejeitar uma certa superioridade cool que os filmes de Nolan exalam, oferece todo um pano de fundo psicanalítico que torna o Batman mais complexo.
A ideia de um “rato com asas”, que se mostra central no filme a partir do enigma proposto pelo Charada, também enfatiza essa imagem do próprio morcego como um animal indigno. Um animal que, mesmo voando, não possui qualquer graciosidade. Um animal que, durante a própria trama, é confundido com uma simples pomba na resolução errada da charada.
O rato, como afirma o próprio Gordon quando se refere ao desafio estabelecido pelo Charada, é o tema dos obstáculos propostos. Uma imagem que, consequentemente, sintetiza as indagações existenciais do personagem: ele vive no escuro, transita sem ser percebido e, de alguma forma, sente que vive em um submundo próprio. Mesmo a relação com a mulher gato faz da figura do rato uma imagem bastante oportuna nas relações de poder entre o casal.
Se o filme de Reeves possui essa atmosfera de pesadelo, podemos dizer que o rato é o tema implícito do subconsciente da obra. Uma figura recorrente, mas que nunca se torna uma tese direta e óbvia. Uma imagem que contamina aquele entorno como se brotasse de uma patologia que nunca foi devidamente resolvida.
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ENTRE A FASCINAÇÃO E A DISTORÇÃO
Mesmo o fato do cineasta deixar, quase sempre, os personagens em uma espécie de segundo plano nos enquadramentos, reitera a perspectiva de um mundo que é caracterizado como um pesadelo de formas e figuras sugestivas.
As composições do cineasta abusam de elementos e objetos na frente da câmera – vidros sujos, formas desfocadas, luzes remodelando a fisionomia dos corpos e etc. O modo como a fotografia do filme lida, principalmente, com áreas desfocadas e com a baixa profundidade de campo concebe uma abordagem quase abstrata do espaço.
Da mesma forma, os closes e os planos médios que mostram os personagens nunca são “limpos”. Sempre existe uma luz ou uma área fora de foco antagonizando com as figuras humanas. Algo que reforça, ainda mais, essa perspectiva distorcida e ambígua da obra como um pesadelo.
O mais interessante é perceber como Reeves consegue propor esses elementos bastante estilizados sem nunca fazer disso um mero capricho maneirista. Assim como em Deixe-me Entrar (2010) e em alguns dos melhores momentos dos filmes da franquia Planeta dos Macacos, o diretor equilibra muito bem a ideia de distorção dos espaços e de fascinação por elementos externos (como luz e chuva) com a presença dramática dos personagens.
Esse encantamento visual que consegue ser impositivo, mas nunca exibicionista, funciona, também, nas cenas de ação. As cenas em que o Batman entra na boate e a perseguição com o Pinguim são ótimos exemplos de como é possível fazer sequências em que a ação possui uma aparência mais crua, ainda que altamente estilizada. São cenas austeras no sentido de não abusarem de modo tão óbvio de efeitos digitais, mas que também recusam uma encenação totalmente realista e assumem uma ideia de espetáculo visual oportuno.
Essa abordagem com a ação, inclusive, dialoga diretamente com a abordagem de alguns filmes contemporâneos que melhor sintetizam um conceito cinematográfico de “filme de gibi” sem soarem derivativos, como John Wick (2014) e Mad Max: Estrada da Fúria (2015).
São blockbusters que propõem um deslumbramento mais irreal e assumido com suas imagens (não tentam legitimar a fantasia como algo verossímil), mas ainda conseguem manter uma pegada ríspida com a ação.
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UM POTENCIAL PULP
Levando em conta essa relação crua com a violência e com os diálogos, como também a caracterização anacrônica, podemos dizer que Batman explora uma veia mais pulp dos quadrinhos. Uma essência B dessas histórias no sentido de envolverem temáticas lúgubres, e até caricatas, com aspectos agressivos do comportamento humano.
Me parece que o erro principal do Christopher Nolan, em suas adaptações, foi ignorar esse potencial pulp, esse aspecto mais caricato, e reimaginar toda aquela dimensão dentro de uma ação policial realista-estilosa à Michael Mann.
Com certeza os filmes de Nolan tem seus momentos, mas é algo que nunca explora possibilidades fantasiosas do imaginário que o personagem apresenta. Possibilidades fantasiosas não no sentido clássico de elementos fantásticos, mas de sugestões alegóricas que podem surgir daquela figura e daquele mundo.
Matt Reeves, pelo contrário, realiza um filme dramático e sério que dialoga diretamente com isso. Além do possível imaginário psicanalítico que se concretiza em elementos de cena e dessa maleabilidade com a representação da realidade, toda a base que remete a questões de filme noir ou de literatura hardboiled é outra clara tentativa de buscar essa essência pulp.
Em um momento ou outro, até me parece que o cineasta se perde um pouco quando tenta dramatizar demais as cenas (principalmente nas sequências que antecedem os confrontos finais). O filme exagera nessa sobreposição dos espaços e cenários para suprir algo que não consegue tirar do elenco em momentos específicos – Pattinson é até subaproveitado em alguns planos – mas não é nada que afeta a unidade da obra como um todo.
É inegável que, dados todos os acertos do longa, Matt Reeves encontra uma harmonia muito poderosa entre as fantasias e patologias do personagem e a sua busca por uma humanidade e dignidade perdidas.