LICORICE PIZZA (2021): O íntimo e o épico

Paul Thomas Anderson constrói um romance sobre a força do mundano

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Livremente inspirado em acontecimentos da vida do produtor e ator Gary Goetzman, Licorice Pizza é um filme que preserva o aspecto visual grandioso do trabalho de Paul Thomas Anderson ao mesmo tempo que apresenta um olhar intimista sobre a vida dos dois jovens protagonistas.

O filme conta a história de Gary, um ator e empreendedor de 15 anos que se apaixona por Alana, uma mulher de 25 anos que sente que sua vida está sem rumo. Em um clima que mistura o drama coming of age da premissa com aspectos do momento cultural e político dos anos 70, o cineasta norte-americano oferece um filme com personagens cativantes e uma caracterização histórica detalhista.

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UMA LÓGICA DE DEAMBULAÇÃO

Apesar da premissa de Licorice Pizza soar simples, a estrutura do filme é bastante ambiciosa. Enquanto acompanhamos as desventuras de Gary e Alana confinados a uma espécie de limbo do show business, o trabalho apresenta novos personagens e novas situações em um ritmo dinâmico.

Algo que, inicialmente, pode até nos passar a impressão de uma narrativa bagunçada. Porém, mais do que oferecer uma estrutura dramática convencional, o diretor e roteirista está interessado em uma lógica de deambulação.

Enquanto a relação conturbada e a tensão entre o casal de protagonistas nunca é deixada de lado, ambos estão sempre passando por experiências que envolvem tanto o imaginário do local em que eles se encontram (a proximidade com Los Angeles e Hollywood), o contexto cultural da época (que Gary tenta acompanhar pelos seus empreendimentos) ou mesmo acontecimentos arbitrários que não ficam totalmente claros (como a cena da prisão e outros núcleos mais específicos).

Se analisarmos a obra através do olhar convencional de um manual de roteiros, vários desses episódios podem parecer aleatórios ou mesmo sem uma motivação definida. A questão é que, mesmo que o cineasta esteja realizando um trabalho narrativo, ele compõe uma estrutura de eventos que segue uma trajetória de vida própria.

Várias sequências podem não ter uma relação direta entre si, porém o modo que estão montadas respondem a um ritmo muito bem orquestrado, respondem até mesmo a uma espécie de musicalidade que a decupagem do cineasta vai compondo.

A cena em que Gary é preso, por exemplo, pode soar aleatória ou gratuita, mas sua construção atmosférica funciona como um jazz improvisado. O personagem não está dentro de uma jornada de pontos objetivos, ele vai sendo levado por casualidades do espaço em que se encontra.

Mesmo a abordagem estética de Anderson reforça essa ideia na medida em que o cineasta constrói planos com estímulos visuais muito bem definidos. Antes de Gary ser preso, o cineasta apresenta uma série de elementos audiovisuais estimulantes no evento em que ele se encontra, o que nos coloca em um estado de fascinação muito específico. O uso de planos sequências e a caracterização detalhista dos espaços ajuda muito nessa entrega.

Uma vez que estamos tomados por essa fascinação, uma vez que estamos imersos naquele mundo, esses acontecimentos que, objetivamente, podem soar descontínuos, funcionam como ondas que vão nos carregando junto com os personagens. Algo que Anderson já trabalhou diretamente em Vício Inerente (2014), mas que aqui funciona com mais naturalidade, principalmente pela relação de maior intimidade que a câmera cria com seus personagens.

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O ROMANCE COMO PONTO DE REFERÊNCIA

Existe, nessa lógica de deambulação, tanto um atributo lírico, já que os estímulos sensoriais dos ambientes e das ações são extremamente relevantes para que o efeito de fato funcione, como também um atributo narrativo e dramático, já que o desfecho dessas cenas isoladas tem uma função específica no arco da história do casal.

Ou seja, ainda que boa parte da obra seja conduzida por esses estímulos e situações isoladas, a história do casal sempre permanece em uma evolução dramática relativamente linear. As sequências não funcionam como um mero fetiche nostálgico ou cinéfilo – ainda que isso exista em um grau – e servem como gatilhos para gerar tensões e resoluções na história de amor.

Gary e Alana, de certa forma, estão sempre se salvando durante essas deambulações. Na cena da prisão, ela corre em busca dele de modo quase instintivo. Na cena em que ela cai da moto que o personagem de Sean Penn pilota, ele faz o mesmo.

O diretor se aproveita dessas sequências independentes tanto para tirar uma força própria disso – Tom Waits como um possível Mark Robson e o próprio Sean Penn como um possível  William Holden funcionam quase como um curta-metragem por si só – como também se utiliza disso para revelar novos aspectos dos personagens e conservar o gênero do romance como um constante ponto de referência.

A deambulação não funciona apenas como um exercício aleatório, pois cria situações inusitadas que reforçam a intimidade do casal. Mesmo quando o filme se utiliza de elementos de outros gêneros para tornar suas situações mais envolventes, como uma comédia inusitada no episódio com o personagem de Bradley Cooper ou um drama mais denso no episódio com o personagem de Benny Safdie, a relação entre o casal é tensionada na conclusão de tais núcleos.

O romance, em suas aplicações até mesmo convencionais, permanece como ponto de referência. Por mais que o filme tente fugir de sua rota, ele acaba voltando para elementos cotidianos mundanos envolvendo Gary e Alana. Aspectos da convivência que, no fim das contas, são mais impactantes do que as jornadas independentes que a trama percorre.

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ENTRE O ÍNTIMO E O ÉPICO

Toda a abordagem formal de Licorice Pizza, tanto na elaboração de seus episódios independentes como também na relação da câmera com o casal, propõe um equilíbrio entre uma complexidade técnica bastante característica do cineasta (conhecido por seus planos sequências e movimentos de câmera rigorosos) e um aproximação intimista que reforça a tensão afetiva da vida cotidiana.

Essa abordagem mais íntima e rigorosa, inclusive, remete muito a Trama Fantasma (2017), longa anterior do cineasta. Porém se lá esse rigor parecia travado demais devido a uma busca academicista, aqui ele está mais à vontade para valorizar as expressões e sutilezas do elenco.

Enquanto que, de modo geral, os filmes anteriores de Paul Thomas Anderson sugerem algo épico tanto na elaboração técnica dos planos e da decupagem (travellings longos, uso de gruas, sequências longas com a câmera em steadicam e etc.) como também, em certos casos, na construção das cenas propriamente – Sangue Negro (2007) é o ápice disso no melhor sentido -, Trama Fantasma e Licorice Pizza oferecem um caminho alternativo.

O cineasta conserva essa mesma complexidade técnica, mas busca uma intimidade mais específica com o drama e com o elenco. Em Licorice Pizza, particularmente, essa complexidade técnica “artesanal” está mais presente do que nunca, mas existe um interesse igualmente relevante pela presença dos personagens e por suas ações cotidianas.

Os travellings estão especialmente mais complexos e o uso da película 35 mm (o cineasta não grava seus longas em formato digital) faz ainda mais sentido no modo em que o filme registra muito bem as variações de luz; entretanto, sempre existe algum elemento humano mediando essas relações.

A cena inicial, em que Gary conhece Alana, é um ótimo exemplo. Apesar do visível virtuosismo técnico no modo em que a câmera acompanha os personagens, o apelo central vem da dinâmica dramática espontânea e da tensão afetiva muito bem orquestrada na figura do casal. Um momento aparentemente mundano vai, aos poucos, se transformando em uma experiência de encantamento.

É possível perceber essa abordagem que lida com o íntimo de forma épica em trabalhos anteriores do cineasta, sendo Embriagado de Amor (2002) uma espécie de ensaio para essa fase mais intimista. Porém, em certos casos, uma busca mais ambiciosa por lidar com temas diversos de uma só vez frustra toda essa operação – Magnólia (1999) é, definitivamente, o que mais sofre com isso nesse sentido.

Talvez o fato de que, agora, o próprio Paul Thomas Anderson é o responsável pela direção de fotografia desses dois últimos longas (ainda que contando com uma equipe essencial de técnicos e colaboradores) tenha uma relação direta com o sucesso dessa abordagem que equilibra o íntimo e o épico.

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A MATURIDADE DE UM OLHAR NOSTÁLGICO

Vários aspectos da abordagem do cineasta, principalmente nessa mediação grandiosa de aspectos íntimos e no seu interesse temático pelos anos 70, podem nos remeter a alguns trabalhos de Quentin Tarantino.

Seja no sentido de Tarantino, da mesma forma, conservar uma complexidade técnica em obras mais intimistas como À Prova de Morte (2007) e Era Uma Vez Em… Hollywood (2019) – são filmes que recusam os artifícios maníacos dos dois Kill Bill, sendo À Prova de Morte, de certo modo, a antítese de Kill Bill – como também nessa obsessão por recriar um imaginário do show business norte-americano durante momentos de instabilidade econômica, política e até de incertezas sobre o próprio futuro do cinema.

Era Uma Vez Em… Hollywood, principalmente, dialoga diretamente com isso. Tarantino lida com um pano de fundo grandioso (a decadência do sistema de estúdios), mas se foca em elementos cotidianos e íntimos daquele mundo.

Talvez Paul Thomas Anderson e Tarantino sejam os cineastas norte-americanos que, hoje, melhor recriam os anos 60 e 70 de um modo que as caracterizações permaneçam naturais, porém alguns elementos icônicos e caricatos são destacados e até ironizados. Os dois, nesse sentido, revelam que um olhar nostálgico pode manter o seu romantismo, pode conservar o seu tom espirituoso e até seus exageros, mas ainda assim ser embasado por uma maturidade dramática.

No caso de Anderson, a direção de atores tende a ir para um caminho levemente mais realista – o núcleo do Benny Safdie em Licorice Pizza é até relativamente contido – mas ele sempre acaba engrandecendo figuras ou elementos particulares através da música e de uma construção de personagens que fica entre o fiel e o exagerado.

Tom Waits como um possível Mark Robson, em seu encontro com Sean Penn, é a medida exata dessa equação. As ações e diálogos vão fluindo com uma naturalidade veloz ao mesmo tempo que se preserva um exagero e uma excentricidade que, sem dúvidas, faz justiça a aspectos daquelas pessoas e daquela época, mas que também sabe dosar o seu romantismo com uma segurança invejável.

A maior qualidade de Licorice Pizza está nessa harmonia. O diretor não é nem muito contido na caracterização daquele espaço ou mesmo em sua abordagem com o romance, mas também não chega a impor artifícios que fariam com que todo aquele entorno soasse artificial.

Paul Thomas Anderson conta uma história que pode parecer incomum se levarmos em conta toda a ambientação e os acontecimentos, mas tira a força justamente de aspectos mais simples daquele entorno (um garoto que passa uma cantada em uma garota mais velha, uma conversa de telefone, um jantar em um restaurante). Até a fisionomia dos protagonistas, que recusa uma convenção padrão de beleza, indica isso.

Mesmo se aquele entorno soe épico, excêntrico ou até romantizado, o que mais impacta no filme é o aspecto humano de seus personagens e a naturalidade de suas resoluções. É o modo como a intimidade dos protagonistas é mais fascinante do que qualquer outra elaboração visual ou narrativa grandiosa.