ATAQUE DOS CÃES (2021): O peso dos mitos

Jane Campion se utiliza da roupagem do western para revelar a ambiguidade de seus personagens

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Premiado com o Leão de Prata de melhor direção no Festival de Veneza de 2021 e distribuído mundialmente pela Netflix, Ataque dos Cães é um drama psicológico que se apresenta como um western.

Baseado no romance de Thomas Savage, o filme tem como protagonista Benedict Cumberbatch no papel de Phil Burbank, um cowboy solitário e, aparentemente, sem sentimentos, que está constantemente julgando as escolhas de seu irmão. Quando este se casa com Rose, Phil estabelece uma estranha relação com o filho da personagem.

Jane Campion é uma cineasta que sempre trabalhou muito bem com um peso implícito em pequenas ações de seus personagens. Filmes como O Piano (1993) e Em Carne Viva (2003) possuem um poder de sugestão bastante minucioso nesse sentido. São obra que, apesar de lidarem com temas pesados, constroem o seu impacto a partir de detalhes muito precisos.

Talvez a principal marca de Campion seja essa: revelar a gravidade do mundo através de gestos meticulosos. Em Ataque dos Cães, a autora parte da iconografia do western para trabalhar com personagens que podem não expor suas intenções verbalmente, mas sempre deixam tudo muito implícito.

Um método que, logo no início do filme, já não soa tão sutil assim. Apesar do longa buscar essa insinuação das ações e olhares sugestivos, tudo aqui parece carregado demais. Os olhares, ações e gestos de Phil soam até um pouco óbvios nessa imagem de cowboy distante e impiedoso que a obra pretende construir.

Em um primeiro momento, alguns podem até ter a impressão de que a cineasta simplesmente pesou tanto a mão nessa busca por uma sutileza que atingiu justamente o contrário. Porém, em boa parte do longa, essa sutileza mais exagerada funciona como uma espécie de máscara que os personagens precisam conservar a duras custas. Todos aqui carregam personas baseadas na cultura do western como uma vestimenta cada vez mais fatigante.

O maior apelo dramático da obra está em observar essa deterioração, observar como esse possível eu verdadeiro de cada um deseja irromper através dessas personas. Ou como esse eu verdadeiro, talvez, nem exista mais e já foi totalmente infectado por aquela imagem. Os mitos do western, nesse aspecto, nunca engrandecem aquelas figuras. Pelo contrário, esse peso as tornas menos humanas, como se fossem zumbis respondendo a um instinto.

Portanto, é como se Campion subvertesse um pouco seu método ao mesmo tempo que fosse fiel a ele. Ela oferece um interessante paradoxo em que um gesto possui um peso que beira o exagerado, ainda que preservando um mistério daquelas ações.

Sua abordagem formal mais austera, formada por composições rigorosas, planos fixos ou movimentos de câmera mais sutis e convencionais se adequa muito bem a isso. A câmera é uma espécie de observadora. Ela está sempre à espreita, captando essa movimentação e registrando os ambientes de modo mais direto.

Os planos não refletem uma possível instabilidade interior dos personagens de modo óbvio e são formados por detalhes que reforçam uma ambiguidade das situações, principalmente pelo modo como a cineasta capta os closes e gestos.

Ainda que exista alguma estilização, principalmente em como Campion trabalha com focos de luzes mais pontuais nas cenas internas e em como impõe um amarelo que beira o monocromático em várias cenas externas, isso nunca salta aos olhos e a obra é feliz em conservar um aspecto contemplativo que reforça elementos visuais daquela realidade.

Até o ato final, a diretora trabalha muito bem com tudo isso, já que está mais interessada em uma possível tensão dramática que é reforçada pelas situações do que em um simples jogo de mostra e não mostra.

Na resolução da narrativa, isso perde um pouco a força na medida em que Campion quer deixar tudo muito claro na relação entre os personagens de Cumberbatch e de Smit-McPhee sem, teoricamente, mostrar nada. Ela sai da tensão mais contextualizada e cai em um fetiche exibicionista de ações que, de modo óbvio, insinuam uma tensão sexual entre os dois. As cenas da corda e as conversas entre os personagens sobre figuras masculinas atestam isso.

Toda essa contenção, pelo menos nessas cenas, acaba virando um artifício que serve unicamente para não mostrar algo que já é evidente. O que pode soar, no fim das contas, como uma escolha segura demais (ou até moralista em algum sentido).

De toda forma, em boa parte do filme a cineasta preserva muito bem essa dinâmica em que o elenco, de algum modo, carrega o fardo das suas próprias figuras. Em alguns momentos, a construção das cenas remete até mesmo aos filmes de Yasujiro Ozu nessa relação das “máscaras” que os personagens vestem, dessa roupagem que eles devem sempre conservar.

Se nos filmes de Ozu isso era mediado por uma aparência de cotidiano comum que esconde um mar de sentimentos em um sorriso, aqui são figuras emblemáticas e com ar até mítico que ocultam um lado mais humano.