O que foi o DOGMA 95?

Com uma proposta radical de um cinema realista, o movimento questionou a figura do diretor

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O Dogma 95 foi um movimento do cinema contemporâneo que nasceu na Dinamarca.

Inicialmente, o Dogma foi concebido como um manifesto assinado pelos cineastas Lars von Trier e Thomas Vinterberg. O manifesto foi apresentado, pela primeira vez, em 1995 durante o evento Le Cinéma vers son deuxième siècle (O cinema na direção de seu segundo século), uma conferência sobre o futuro do cinema que aconteceu em Paris.

Nesse documento, os diretores propuseram uma nova estética cinematográfica, definindo regras e preceitos que os filmes que seguissem o Dogma deveriam cumprir.

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CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA

Uma das características do cinema contemporâneo, principalmente de obras produzido a partir dos anos 90, é uma ausência de movimentos cinematográficos definidos. Podemos reconhecer várias tendências contemporâneas, mas a ideia de um movimento, da mesma forma que acontece no cinema moderno (como a Nouvelle Vague e o Cinema Novo) é muito mais rara.

Ainda que seja possível perceber algumas ondas estéticas em voga nessa época – os “cineastas-artistas” que depois deram origem ao chamado Cinema de Fluxo são um bom exemplo – Lars von Trier viu esse momento histórico como uma boa oportunidade para apresentar uma proposta bastante radical ao seu modo.

Visto que a história do cinema seguia um caminho cada vez mais não linear e que Hollywood, progressivamente, dominava as salas com filmes convencionais, Lars von Trier apresenta o seu manifesto como uma alternativa a algo novo e com uma identidade marcante.

O cineasta, de algum modo, “força” a existência de um movimento. E como já conhecia alguns diretores talentosos da Dinamarca, ele monta um grupo inicial do Dogma para realizar os primeiros filmes desse projeto.

A conferência em Paris na qual o movimento foi apresentado, em 1995, também é bastante oportuna porque marca os 100 anos da invenção do cinema – pelo menos de acordo com algumas convenções históricas mais tradicionais.

Utilizando-se dessa temática da convenção que refletia sobre o atual estado do cinema, o cineasta propõe um movimento que, diferente dos movimentos modernos que nascem de modo espontâneo, é concebido a partir de regras arbitrárias e compromissos estéticos impositivos

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O MANIFESTO

Quando foi convidado para a conferência Le Cinéma vers son deuxième siècle (O cinema na direção de seu segundo século), Lars von Trier chamou Thomas Vinterberg para escrever o manifesto do Dogma 95 e o Voto de Castidade. O manifesto seria o texto com as ideias do Dogma e o Voto de Castidade conteria as regras que os filmes do Dogma deveriam seguir.

O texto do Manifesto tem início dizendo que o Dogma tem o compromisso formal de se levantar contra uma certa tendência do cinema atual. A partir de regras autoritárias, o movimento critica até mesmo a Nouvelle Vague francesa por ter sido ela, segundo seus idealizadores, um movimento que se perdeu na individualidade de seus cineastas e no conceito de autor.

O Dogma quer recusar a ideia de individualidade e autoria, como se ela tornasse os diretores muito vaidosos e, consequentemente, criasse obras fracas e falsas. O Manifesto propõe, portanto, uma espécie de “voto de castidade artístico” em que o diretor, teoricamente, não vai criar, mas seguir o Dogma e suas regras.

Surge, então, o conceito de coletivização das obras. Um conceito em que os filmes seriam colocados em uniformes e não mais seriam obras individuais. O objetivo do novo cinema do Dogma, dessa forma, é arrancar uma verdade dos personagens e cenários, rejeitando qualquer escolha estética mais pessoal.

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AS REGRAS DO DOGMA 95

O Voto de castidade do Dogma é formado por estes 10 preceitos:

1. As filmagens devem ser feitas no local. Não podem ser usados acessórios ou cenografia (se a trama requer um acessório particular, deve-se escolher um ambiente externo onde ele se encontre).

2. O som não deve jamais ser produzido separadamente da imagem ou vice-versa. (A música não poderá ser utilizada a menos que ressoe no local onde se filma a cena.)

3. A câmera deve ser usada na mão. São consentidos todos os movimentos (ou a imobilidade) devidos aos movimentos do corpo. O filme
não deve ser feito onde a câmera está colocada, são as tomadas que devem desenvolver-se onde o filme tem lugar.

4. O filme deve ser em cores. Não se aceita nenhuma iluminação especial. (Se há muito pouca luz, a cena deve ser cortada, ou então, pode-
-se colocar uma única lâmpada sobre a câmera).

5. São proibidos os truques fotográficos e filtros.

6. O filme não deve conter nenhuma ação “superficial”. (Homicídios, armas, etc. não podem ocorrer.)

7. São vetados os deslocamentos temporais ou geográficos. (O filme deve ocorrer na época atual.)

8. São inaceitáveis os filmes de gênero.

9. O filme final deve ser transferido para cópia em 35 mm, padrão, com formato de tela 4:3. Originalmente, o regulamento exigia que o
filme deveria ser filmado em 35 mm, mas a regra foi abrandada para permitir a realização de produções de baixo orçamento.

10. O nome do diretor não deve figurar nos créditos.

Além disso, juro como diretor, renunciar ao meu gosto pessoal. Não sou mais um artista. Eu juro renunciar à criação de uma obra, já que
considero o instante mais importante que o todo. Meu objetivo supremo é arrancar a verdade de meus personagens e cenários. Prometo fazê-lo por todos os meios à minha disposição e ao custo de qualquer bom gosto e considerações estéticas. Portanto, faço aqui meu voto de castidade

Copenhage, 13 de março de 1995

Lars von Trier, Thomas Vinterberg
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O INÍCIO DO MOVIMENTO

O Dogma 95 nasceu como algo bastante dúbio. Muitas pessoas achavam até que tudo aquilo era apenas uma piada ou jogada de marketing de Lars von Trier. Mesmo o modo como o cineasta apresentou o movimento em Paris, jogando panfletos vermelhos com o manifesto e se recusando a responder perguntas, foi bastante performático.

Três anos depois, surgem os dois primeiros filmes que seguiam as regras propostas pelo movimento: Festa de Família (1998), de Thomas Vinterberg, e Os Idiotas (1998), de Lars von Trier. Os dois trabalhos foram selecionados para o Festival de Cannes de 1998, sendo que o filme de Vinterberg chegou a ganhar o Prêmio do Juri no festival francês.

Festa de Família (1998)

Com o reconhecimento crítico desses dois filmes e, logo depois, de Mifune (1999, Søren Kragh-Jacobsen) que leva o Urso de Prata no Festival de Berlim de 1999, o Dogma começou a ser levado em consideração.

De toda forma, a dúvida sobre os reais objetivos do movimento nunca foi exatamente sanada. Levando em conta o histórico polemista de von Trier, podemos chegar a conclusão que o seu movimento era uma mistura de uma abordagem conceitual com algumas tiradas mais espirituosas. O que, sem dúvida, ajudou no marketing desses filmes.

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A ESTÉTICA DO DOGMA

No geral, as ideias do Dogma remetem a uma estética mais realista e menos estilizada. Principalmente pelo uso da câmera na mão que reforça um aspecto documental e espontâneo das cenas.

Outra importante característica formal do movimento é o uso de câmeras digitais de baixa resolução. Tanto por uma questão de praticidade como também por oferecer uma estética mais suja e autêntica, alguns cineastas do movimento gravam seus filmes em suportes digitais.

Nesse sentido, podemos dizer até que o movimento foi um precursor no uso dessa tecnologia pelo cinema. Após alguns anos, com o avanço da tecnologia do vídeo, a maioria dos filmes do mundo passam a ser gravados em digital.

O uso de câmeras digitais, o recuso por iluminação artificial e toda essa abordagem mais realista concretiza muito bem uma certa descosmetização do cinema que o manifesto propõe. Descosmetização no sentido de que o cinema, de modo geral, estaria sendo cosmetizado por estéticas hollywoodianas e comerciais. O cinema estaria se entregando a cosméticas em voga e não explorando estéticas de modo mais inventivo.

Durante seu trabalho na série de TV The Kingdom, Lars von Trier já estava optando por algumas experimentações de linguagem que tornavam o drama mais realista. O uso da câmera na mão, por exemplo, surge como um método prático para dar conta do alto número de gravações de uma série de TV, porém se transforma em uma escolha estética ao longo da carreira do cineasta.

É claro que as ideias dessa estética proposta não são totalmente novas, já que remetem muito ao cinema moderno dos anos 60 e a movimentos como à própria Nouvelle Vague. A novidade reside muito mais na forma particular em como cada cineasta irá conciliar as regras do Dogma 95 com a sua própria visão artística.

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7 FILMES PARA CONHECER O MOVIMENTO

Agora que você já conhece um pouco da definição e do contexto do Dogma 95, vamos listar 7 filmes do movimento que representam muito bem os seus preceitos.

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FESTA DE FAMÍLIA (1998) – THOMAS VINTERBERG – Dogma 1

Filme inaugural do Dogma, Festa de Família se passa durante a reunião de uma família da alta sociedade que está celebrando o aniversário de sessenta anos de seu patriarca. Durante a comemoração, um dos filhos deste homem declara que seu pai abusou sexualmente dele e de sua irmã gêmea, que se suicidou.

O longa, no geral, possui um tom bastante ambíguo, transitando entre uma comédia de erros e um drama pesado. Além de lidar com um trauma de infância, muito da dinâmica dramática da obra se dá entre os confrontos dos personagens que estão sempre brigando ou sob algum momento de tensão.

Visualmente falando, o que mais chama a atenção no filme é a disparidade entre os ambientes burgueses e a textura de baixa resolução da câmera, o que torna a estética do filme “feia”. Nesse sentido, o diretor desconstrói formalmente alguns valores em cena.

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OS IDIOTAS (1998) – LARS VON TRIER – Dogma 2

É a história de um grupo de pessoas que tem o hábito de frequentar locais públicos fingindo que possuem alguma disfunção mental. Tais pessoas usam a justificativa de estarem buscando o seu “idiota interior” para se livrar de suas inibições e, também, para questionar costumes e tradições.

Com uma abordagem estética ainda mais crua do que Festa de Família, Lars von Trier grava Os Idiotas como se realmente estivesse fazendo um documentário, ideia que é reforçada pelas cenas em que os personagens dão entrevista olhando para a câmera e conversando com o diretor.

O cineasta rejeita qualquer rigor ou ideia de uma composição mais artística. Lars usa a câmera como um meio de registro do que está acontecendo. Ainda assim, o cineasta mostra um senso muito aguçado de decupagem e se utiliza de jump cuts para construir uma tensão muito específica.

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MIFUNE (1999) – SØREN KRAGH-JACOBSEN – Dogma 3

O filme conta a história de um personagem que vive uma vida burguesa em Copenhague, mas volta para a fazenda de sua família depois do falecimento de seu pai, que morava com seu irmão que possui um transtorno mental.

O protagonista então publica um anúncio em um jornal a procura de uma ajudante, ao qual responde uma prostituta. A partir daí, os personagens constroem uma espécie de núcleo familiar próprio.

Mais uma obra de crítica à burguesia, Mifune não é um trabalho tão radical como os outros, tanto tematicamente como formalmente. O diretor usa uma câmera na mão mais espontânea em boa parte do filme, mas o longa foi filmado em  película 35mm,  portanto a textura já é bem mais agradável, as cores possuem mais definição e a luz ganha mais contraste.

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O REI ESTÁ VIVO (2000) – KRISTIAN LEVRING – Dogma 4

O longa segue um grupo de turistas que se perde no deserto do Namibe. Um desses personagens é um diretor de teatro que decide encenar a peça Rei Lear, de William Shakespeare, com os outros turistas enquanto a ajuda não chega.

Uma espécie de meio-termo, essa obra não é tão radical como Festa de Família e Os Idiotas, mas também não é tão convencional como o Mifune. Possui uma estrutura narrativa que remete muito ao gênero do survival film conciliado com uma construção psicológica  intensa dos personagens.

Estilisticamente, o longa segue a abordagem mais ruidosa do Festa de Família, ainda que com uma dinâmica mais controlada e menos esquizofrênica que a decupagem de Vinterberg.

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JULIEN DONKEY-BOY (1999) – HARMONY KORINE – Dogma 6

Alguns diretores fora da Dinamarca gravaram filmes do Dogma e, talvez, o caso mais emblemático seja Julien Donkey-Boy, de Harmony Korine.

O longa, na verdade, mal tem uma história e mostra alguns momentos de uma família disfuncional em que um dos filhos é um garoto que possui uma esquizofrenia que nunca foi tratada. Toda a obra é bem performática e mal parece que existe um roteiro.

Tendo sido gravado em vídeo, transferido para 16mm e posteriormente para 35mm, o filme possui uma estética com a falta de definição do digital, baixo alcance de cores, mas também muitos grãos, o que gera uma textura específica.

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ITALIANO PARA PRINCIPIANTES (2000) – LONE SCHERFIG – Dogma 12

Comédia romântica que mostra um grupo de pessoas solitárias de uma cidade na Dinamarca que se encontram em um curso de italiano. O trabalho mostra o drama desses personagens ao mesmo tempo em que se envolvem entre si.

O tom do filme é bem mais leve do que o dos longas citados anteriormente e sua estrutura pode ser considerada mais convencional. Em termos estéticos, o trabalho não tenta desconstruir muita coisa e possui uma decupagem com uma câmera na mão mais controlada.

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.CORAÇÕES LIVRES (2002) – SUSANNE BIER – Dogma 28

No início do filme, um homem é atropelado, perde todos os movimentos do pescoço para baixo e, durante a história, o marido da mulher que o atropelou começa a ter um caso com a noiva desse homem.

Essa obra mal parece ser um Dogma. Apesar de ter a câmera na mão e uma decupagem mais espontânea, boa parte das cenas são bem iluminadas e a textura do digital é bem mais limpa. A diretora, em especial, lida bem com realismo e melodrama.

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OS CINEASTA SEGUIRAM O MANIFESTO?

No fim das contas, o manifesto do Dogma nunca foi seguido exatamente à risca. O próprio Lars von Trier quebra uma de suas regras, por exemplo, ao se utilizar da música de uma forma não diegética em Os Idiotas.

De toda forma, o manifesto serviu como uma espécie de provocação e desafio para esses cineastas. Como os diretores se viram obrigados a tornar suas obras mais práticas e realistas, cada um toma decisões bem particulares. O Dogma, ao questionar a posição desses cineastas, abre suas obras para novas possibilidades.

Ironicamente, o sucesso do Dogma vem muito do que o movimento, pelo menos em teoria, queria evitar, vem do olhar artístico e autoral dos cineastas. Os filmes do movimento até seguem as regras como uma possível base, mas é inegável que o diferencial desses trabalhos nasce de um olhar autoral muito específico de cada cineasta sobre tais preceitos.

Este artigo é baseado em uma aula completa do Curso Online de Cinema.

A autoria é de Arthur Tuoto com colaboração de Flávia Ramos Leão na transcrição e edição.

REFERÊNCIAS:

Peter Schepelern – Depois da festa: o efeito do Dogma no cinema dinamarquês.
Arthur Tuoto – Curso Online de Cinema: Aula 095

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