A MULHER QUE FUGIU (2021): A potência do trivial

Hong Sang-soo propõe um olhar contemplativo sobre a intimidade de suas personagens

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A Mulher que Fugiu (2021) segue a tendência dos últimos filmes do Hong Sang-soo em rejeitar as estruturas mais complexas que marcaram boa parte de sua carreira (as tramas espelhadas, as premissas com acontecimentos mais arbitrários) e se foca em elementos simples como as presenças dos personagens e, em última análise, o registro dessas presenças.

O filme segue Gamhee, vivida por Kim Min-hee, enquanto visita três amigas nos arredores de Seul. Entre encontros que soam banais e conversas cotidianas, o cineasta capta uma aura que vai da fascinação por elementos corriqueiros a um subtexto sombrio e dramático que nunca é revelado totalmente.

Se formos levar em conta a relação de A Mulher que Fugiu com as câmeras de segurança em cena, é interessante como essa premissa das presenças dos personagens se transforma, até mesmo, em uma espécie de motivo estético que pontua o longa.

A personagem de Min-hee é uma participante ativa daqueles diálogos, mas também é uma espectadora do entorno íntimo daquelas pessoas. De um simples vizinho que vem reclamar de um gato a um homem desesperado que implora pelo amor de uma mulher, a protagonista sempre acaba testemunhando algum evento particular envolvendo a vida doméstica de suas amigas.

Acontecimentos que, se por um lado não fazem questão de serem narrativamente tão reveladores assim, por outro propõem momentos de um fascínio cotidiano especial (o zoom no gato é um ótimo exemplo) ou uma tragicomédia (a submissão desesperada do homem suplicando por amor na porta de um apartamento).

Essa lógica de um fascínio pela simples presença e pelos pequenos acontecimentos inusitados segue, também, na forma em que o cineasta aborda a relação dos personagens entre si. Ainda que, no último encontro de Gamhee, é possível assimilar a atmosfera de um subtexto dramático que torna tudo mais pesado, o cineasta parece muito interessado em uma contemplação direta da trivialidade daqueles encontros.

Seguindo essa lógica, a imagem de Kim Min-hee conversando e comendo uma azeitona durante um jantar em seu segundo encontro, se transforma,  na melhor tradição do cinema de presenças de Andy Warhol, em um grande evento do plano. Como o diretor, ao que tudo indica, está limpando seu cinema cada vez mais de qualquer artifício, essa contemplação direta da intimidade se torna um tema central.

É claro que mesmo as obras de Sang-soo que possuem estruturas mais complexas também fazem o uso dessa relação mais franca com os personagens, mas agora, com esses dramas mais lineares, esse aspecto acaba se sobrepondo ao resto.

Tudo isso nos remete a aspectos até mesmo mais primários do cinema. Como se o cineasta propusesse um retorno aos elementos mais básicos da linguagem, como se ele nos mostrasse tudo o que uma cena pode construir e sugerir com os elementos mais básicos possíveis.

Mesmo a construção dos personagens está sendo afetada por esse minimalismo mais radical. Kim Min-hee, que interpreta uma personagem sem uma identidade muito bem definida, está se transformando em uma presença-guia, ou presença-padrão constante que nos direciona pelas cenas. A nossa gratificação como espectador está em não apenas observar esses encontros, mas admirar as reações minuciosas e misteriosas da atriz. O seu sorriso constante à Setsuko Hara contrastando com o subtexto (pesado ou leve) de cada situação

Ver um filme como A Mulher que Fugiu é, antes de tudo, ver a progressão dessa parceria entre diretor e atriz que é das mais definidoras do cinema contemporâneo. Levando em conta o número de trabalhos que a dupla está produzindo  – e a qualidade dos mesmos – não é exagero dizer que estamos diante da construção de um dos legados mais relevantes da história do cinema.