BENEDETTA (2021): O concreto e o místico

Em filme com protagonista intrigante, Paul Verhoeven explora pouco a relação entre santidade e possessão

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Tendo como base para seu filme a história da freira e mística Benedetta Carlini, Paul Verhoeven propõe um retrato que evidencia tanto uma perturbação existencial da personagem, como também o início da sua vida sexual com outra mulher.

Em um primeiro momento, o cineasta lida muito bem com os sonhos e visões da protagonista. Principalmente em como essas imagens, de certo modo, servem como um prenúncio das suas futuras perturbações.

Enquanto que boa parte das cenas cotidianas que se passam no convento possuem uma polidez nas imagens, até mesmo uma sobriedade que dialoga com uma ideia mais clichê de filme de arte, as visões de Benedetta assumem uma identidade “cafona” e até ingênua que parecem muito fiel ao seu imaginário.

A figura de Jesus Cristo como um galã B é fiel tanto a uma representação idealizada “comum” da sua imagem popular como também à perspectiva de uma freira enclausurada: um imaginário masculino ocidental que equilibra a brutalidade das suas ações com traços ligeiramente delicados.

Como a freira mal tem contato com outros homens, parece natural que sua percepção de Cristo sugira um lado mais andrógino. Mesmo o fato da figura do homem crucificado não ter sexo reforça tanto uma ideia de castidade implícita, como também um dado prático (uma freira que simplesmente nem conheceria a aparência exata daquele órgão não teria como imaginá-lo).

É uma pena que, da metade para o final, o trabalho lide de modo tão simplista com a vida mística da Benedetta. De certo modo a obra torna a relação com a religião bem mais vaga, se foca nos apelos mais diretos do possível softcore entre as duas freiras, nas artimanhas da trama política com a elite da Igreja e deixa de lado o aspecto psicológico da protagonista.

Isso até pode fazer sentido dentro da possível proposta exploitation do filme, mas me parece que o cineasta desperdiça justamente o que seria o mais complexo nessa relação entre o que é concreto e o que é místico.

O filme, aos poucos, transforma a personagem em uma espécie de histérica que só responde a estímulos e ignora os questionamentos mais diretos entre a santidade e a possessão.

Ainda que a ideia seja, justamente, deixar isso em aberto, sinto que a obra explora muito pouco essa ambiguidade. Talvez por um medo de, no fim das contas, se tornar um filme moralista (a condenação da personagem vem com a peste, sua parceira sexual possui traços sombrios que remetem a ideia de uma tentação plantada por uma entidade) ou simplesmente por falta de imaginação.

Se por um lado Paul Verhoeven não deseja limitar a protagonista a nenhum desses lados da santidade ou da possessão, faz muito pouco para explorar o aspecto humano dela e, a partir de um certo momento, ignora até mesmo a sua individualidade nesse embate espiritual.

Mesmo o modo como a personagem vai, literalmente, perdendo espaço no final do filme soa como se a obra estivesse a abandonando aos poucos.

Sem dúvidas o longa possui um lado polêmico que pode instigar uma audiência específica mas, vindo de Paul Verhoeven, era de esperar que sua abordagem explícita possuísse uma ligação mais profunda e orgânica com a personagem.