MATRIX RESURRECTIONS (2021): Fanservice cult

Em filme sem ideias, Lana Wachowski impõe seu pretenso manifesto sobre a indústria de modo cínico e forçado

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Em Matrix Resurrections, Neo está outra vez preso na Matrix, agora como o desenvolvedor de um jogo que leva o mesmo nome da franquia e, ao que tudo indica, possui a mesma trama da trilogia original dos filmes. Recebendo ajuda de um novo grupo de rebeldes, o personagem de Keanu Reeves é resgatado para o mundo real novamente.

Neste quarto filme da saga Matrix, dessa vez dirigido apenas por Lana Wachowski, nos deparamos com uma obra que, ao invés de propor uma continuação clássica, comenta sobre o seu próprio imaginário através de uma pretensa desconstrução do gênero em que se insere.

Algo que, por si só, não teria problemas. Grandes franquias do cinema – como os filmes da série Pânico – realizaram isso de modo exemplar. Um diretor como Wes Craven talvez seja um dos melhores exemplos de um autor que, ao mesmo tempo que oferece uma continuidade narrativa às suas histórias, apresenta questionamentos metalinguísticos envolvendo o entorno das obras.

Além dos filmes da franquia Pânico, o ótimo O Novo Pesadelo: O Retorno de Freddy Krueger (1994) propõe algo muito semelhante ao debate que The Matrix Resurrections propõe, especialmente no sentido da obra de 1994 questionar os apelos do próprio mercado que faz parte.

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UMA FALSA DESCONSTRUÇÃO

O principal problema de The Matrix Resurrections não está na radicalidade dessa proposta, mas no modo em que isso é articulado. Até porque, pelo menos em teoria, a cineasta apresenta convicções pessoais que fazem muito sentido.

Eu gosto, principalmente, de como a obra tenta propor uma desconstrução mais direta do imaginário da franquia (principalmente no primeiro ato). Algo que não ficaria apenas nos temas dos filmes e no entorno desse nicho (os fãs mimados, os nerdolas, a indústria, etc), mas também se debruçaria sobre um possível jogo estilístico nos referências com as cenas dos outros longas.

A questão é que boa parte dessas propostas ficam apenas nas intenções. Na maior parte do tempo, Matrix Resurrections não desconstrói nada e, na verdade, se coloca em um lugar ultra seguro.

Um lugar seguro porque sempre existe uma distância irônica entre a diretora e a sua obra, o que possibilita qualquer comentário ou reflexão espertinha. Como, principalmente no primeiro ato do longa, ele nunca se compromete com nada, a obra é livre para atirar para todos os lados. Consequentemente, passa do ponto

É até interessante a forma como a autora mistura alguns formatos em momentos específicos – a sequência do elenco em um palco com as projeções do primeiro filme atrás e o resto do cenário soando como uma instalação em uma galeria de arte é bastante inspiradora -, porém a maioria dos acontecimentos colocados em cena, nesse primeiro momento, soam como uma masturbação sem consequências e uma crítica óbvia à indústria.

Podemos até dizer que essa obviedade é proposital e consciente – o filme se apropria das bobeiras desse universo nerd para comentá-las, mostra como os blockbusters atuais, no fim das contas, são sobre essa autorreferência “programada”. Muitos espectadores e críticos parecem assimilar Matrix Resurrections desse modo.

Acredito que essa realmente pode ter sido a intenção, contudo me parece que o resultado final revela que o tiro saiu pela culatra.

A cineasta quer evidenciar tanto esse manifesto contra os mecanismos da indústria e contra os fãs bitolados que acaba, infelizmente, comentando sobre esses temas a partir de uma perspectiva muito isolada. Ou, pelo menos, nunca de fato os integra na experiência do longa.

Além disso, a obviedade dessas mensagens (a cena com os desenvolvedores pensando na continuação do jogo que eles devem produzir talvez seja a mais besta nesse sentido) carrega um arzinho superior e cínico. Como se a diretora não quisesse, na verdade, denunciar aquele meio (novamente a falta de comprometimento), mas meramente zoar de modo superficial tudo o que diz respeito a ele.

Afinal, ela mesma não estaria caindo em um fanservice ao se focar em apelos tão fáceis assim para construir uma ligação com a sua audiência mais “cult” e esclarecida?

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UM FILME DE TEMAS

Depois do primeiro ato em que a obra lida de modo muito livre (para não falar aleatório) com todos esses questionamentos que têm relação com o legado da franquia e o estado atual do cinema blockbuster, o longa sinaliza um comprometimento maior quando retoma a jornada de Neo e Trinity.

Após ser novamente resgatado, todos os esforços de Neo e do novo grupo de rebeldes que o acompanha estão em resgatar Trinity. A trama se volta para esse objetivo que, logo percebemos, está bem longe de sustentar um filme inteiro.

Não que essa finalidade do resgate, por si só, seja pouco. Mas o modo como isso é abordado dá mais atenção para os temas que essa ação envolve do que para a construção cinematográfica desse empreendimento.

Existe mais a preocupação por questionar de modo meramente descritivo (apenas com falas e situações didáticas) o binarismo redutor de certos temas, ou a centralização dessa figura do héroi salvador no personagem do Keanu Reeves, do que em de fato construir uma experiência dramática e formal que desse conta disso.

Apesar de algumas cenas possuírem um conceito muito interessante entre os elementos dos cenários e o modo como a realidade dramática modifica aquilo (o momento do encontro entre Neo e Trinity no café com os policiais é o melhor nesse sentido), de resto tudo é bem pedagógico e protocolar.

Mesmo estilisticamente, o filme se revela sem ideias. As lutas e toda a ação é coberta por planos bastante genéricos e mediada por uma montagem de cortes abruptos que soam desconexos não em um sentido abstrato e plasticamente possibilitador (como Tony Scott ou Tsui Hark fariam), mas simplesmente truncados e pouco fluidos.

Os cenários isolados, como o da luta com Morpheus ou os ambientes em que os rebeldes passam pela Matrix, são muito mais genéricos e sem personalidade. Ironicamente, os planos mais memoráveis são os planos em que a obra cita o primeiro filme com trechos pontuais.

Novamente, é uma composição genérica que até pode soar proposital dentro desse esquema autorreferencial de um filme performático, desse loop que o próprio longa estaria preso. Mas vários elementos mais básicos são tão fracos – como a decupagem e a coreografia das lutas – que mesmo a partir dessa perspectiva nada disso funcionaria.

Matrix Resurrections é uma obra muito mais interessada em propor declarações isoladas sobre as coisas (a crítica à indústria, os comentários sobre gênero, a crítica à nostalgia) do que em integrar isso em uma experiência única. É um filme que tem uma ânsia por comentar sobre vários temas que basicamente esquece de fazer um filme no caminho.

Até a relação mais ingênua com a fantasia que os outros filmes das Wachowski possui, aqui é minada por uma espécie de cinismo espertinho que precisa impor um hot take aleatório sobre alguma coisa no meio de uma cena. O próprio romance entre Neo e Trinity sofre com essas interferências fora de tom.

O Destino de Júpiter (2015) é um grande filme anti-Marvel não porque declara isso de modo óbvio e cínico, e sim porque se apropria dessa jornada com uma abordagem livre de fórmulas e com ênfase em possibilidades dramáticas que rejeitam um tom espertinho.

Aqui, temos o oposto. Lana Wachowski quer subverter a fórmula ao expor toda a sua engrenagem ao ridículo – o que até poderia funcionar se de fato existisse uma proposta cinematográfica para isso – e passa longe de incorporar suas questões em uma visão com uma unidade.

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A RECUSA PELA CONTINUAÇÃO

No final do filme, temos a impressão de que a obra, simplesmente, se recusa a ser uma continuação. Não em um sentido conceitual ou provocador, mas no sentido de uma falta de ideias.

Quando a diretora não quer dar continuidade direta ao imaginário da franquia, faz zoações aleatórias e óbvias no começo. E quando quer, faz um filme no piloto automático sobre o resgate de uma personagem com o único intuito de corrigir o “erro” de ter tornado Neo o único herói da saga.

Como comentou um seguidor no meu Letterboxd, temos a impressão de que a cineasta fez o trabalho meramente por birra. Talvez sabendo que um quarto filme iria existir mesmo sem a sua participação, a autora se viu forçada a entrar no projeto. Desse modo, ao invés de propor uma continuação, Lana usou a oportunidade para impor um discurso de revolta sobre a sua visão dessa indústria.

Um ponto de vista absolutamente legítimo e bastante verdadeiro em suas intenções (apesar da Marvel e do blockbuster contemporâneo desfrutarem de alguns bons momentos, a maior parte da produção ainda é enlatada por um algoritmo), porém que, quando posto em prática desse modo, soa como a pirraça de um adolescente revoltado.