Julia Ducournau usa a estranheza como mero chamariz em obra dramaticamente pobre
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Titane (2021), o novo filme da cineasta francesa Julia Ducournau, foi o grande vencedor da Palma de Ouro do 74o. Festival de Cannes.
O filme segue Alexia, uma dançarina que realiza performances sensuais com carros e, teoricamente, acaba engravidando de um deles. Após uma série de crimes, Alexia finge ser o filho perdido de Vincent, um capitão de bombeiros.
Titane (2021), de modo geral, remete aos mesmos problemas de Raw (2016), o longa anterior de Ducournau. A obra possui uma abordagem dramática que funciona quando, ironicamente, cai em uma estrutura mais tradicional, já que lida de modo meramente apelativo com seus elementos de estranheza.
Se em Raw o único elemento que chegava a funcionar eram os aspectos mais convencionais do seu drama coming of age (as relações pessoais da protagonista naquele novo contexto de descoberta) enquanto que o canibalismo era só um pretexto para filme ficar “forte”; em Titane a única coisa que parece chegar perto de superar a sua abordagem gráfica gratuita é a relação da protagonista com o personagem do capitão de bombeiros, vivido por Vincent Lindon.
Todo o resto, incluindo a questão sexual com os carros, os elementos mais explícitos de um possível body horror e as cena de assassinato, soam apenas como uma forçação de barra. Uma desculpa para a diretora inserir cenas bizarrinhas que produzam um choque imediato típico de produtos genéricos de um cinema de arte supostamente radical.
É até possível enxergar uma pretensa estrutura que justifique essa disparidade entre o que é mais insólito e o que é mais dramático dentro da proposta da obra, ainda mais pensando nessa figura paternal que falta na vida da personagem.
Existe essa busca por um lugar de acolhimento que a personagem de Agathe Rousselle encontra de modo inesperado naquele pai que procura pelo filho, mas ainda permanece a impressão que o filme é bastante consciente dos seus truques, já que se utiliza dos apelos mais explícitos na parte inicial de modo totalmente isolado.
É como se a obra, para ganhar o espectador no seu primeiro ato, lançasse mão daqueles atos violentos e gráficos de forma aleatória. Algo que não se integra a uma proposta mais geral do longa e serve até mesmo como uma “isca” para gerar um interesse inicial.
Titane não é um filme que define um tema e de fato busca trabalhar com isso do início ao fim. Tanto os elementos bizarros do começo como o drama final soam como artifícios de um pseudodiscurso que levanta questões sobre corpo e gênero do modo mais genérico que consegue.
A personagem de Alexia/Adrien busca uma masculinização como forma de defesa, se vê em um estado marginal devido às circunstâncias, mas o filme tira disso apenas uma estranheza oportuna.
Até percebemos uma delicadeza em um momento ou outro que parece ir além dessa pose, especialmente quando a personagem se mostra desarmada nas cenas com Lindon e sentimos uma ligação um pouco mais genuína entre os personagens.
Mas, no geral, existe a sensação de que o filme desperdiça até mesmo essa proposta dramática e está mais interessado em fazer uma espécie de tour genérico pelo cinema arthouse francês contemporâneo (quase uma fórmula que começaria com Gaspar Noé na primeira parte do filme e terminaria com Bertrand Bonello no final) do que em verdadeiramente propor um olhar particular sobre a sua premissa.
Julia Ducournau, até o momento, parece herdar o pior lado da geração do chamado New French Extremity. Ou, para não ficarmos presos em termos da moda, parece ter herdado o pior lado de um cinema francês contemporâneo de temas e abordagem gráfica mais radicais.
Enquanto grandes cineastas, como Catherine Breillat e Jean-Claude Brisseau, integravam aspectos dramáticos profundos da jornada dos seus protagonistas nos atos em que eles cometiam ou nas situações em que se encontravam, Ducournau parece seguir o caminho mais fácil.
A diretora insere, de modo arbitrário, elementos extremos que operam apenas na superfície da imagem, que funcionam meramente como uma chamariz óbvio em obras dramaticamente muito pobres.