NOMADLAND (2020): Lirismo padronizado

Apesar de ótima caracterização, o longa de Chloé Zhao se entrega a uma fórmula poética


Baseado em um livro da jornalista e escritora
Jessica Bruder, Nomadland segue a trajetória de Fern, uma mulher de 60 anos que vive em sua van enquanto viaja pelos Estados Unidos.
Mais do que simplesmente não ter uma casa, a personagem busca um estilo de vida não convencional e desapegado de confortos cotidianos. 

Apesar da premissa do filme se focar na personagem vivida por Frances McDormand, o longa de Chloé Zhao não está interessado apenas nessa história, mas em usar ela para propor reflexões sobre todo um contexto envolvendo nômades contemporâneos. 

Sendo assim, a diretora possui uma preocupação bastante minuciosa com toda a caracterização da obra, tanto dos seus espaços como dos seus personagens.
Os espaços de trabalho e de convívio, por exemplo, são abordados através de um realismo que não soa apelativo, mas que consegue captar elementos específicos de cada ambiente: da extensão da área de trabalho da Amazon que engole os indivíduos ao espaço claustrofóbico de uma cozinha de fast food.

A diretora propõe uma dinâmica que não é exatamente documental, mas que se aproveita bem destes locais como premissas muito práticas para o drama encenado. Existe até um rigor bem específico na forma em que tudo é enquadrado nos momentos de trabalho, reforçando um tom mecânico de tais atividades.

A interação entre os personagens não busca um naturalismo simplesmente para parecer mais real, mas usa dessa espontaneidade no modo em que eles se expressam para pontuar seus momentos dramáticos. O que remete, de algum modo, ao processo do diretor Terrence Malick.

Existe uma aproximação dos personagens em cena que, na sua forma de captação, reforça uma ideia de um cinema direto, mas na sua montagem e finalização está sempre impondo um lirismo narrativo, está usando esse registro direto como vislumbres de uma estrutura ficcional muito presente. 

Tudo isso – tanto a caracterização muito específica como essa abordagem realista e, ao mesmo tempo, lírica – segura o filme por um tempo. 

Até mesmo a forte presença da Frances McDormand tende a tornar aquela experiência mais particular. O filme possui bons momentos ao relacionar o drama interior da personagem com essa deambulação imprevisível. O problema é que, em certo ponto, isso passa a se repetir como uma espécie de fórmula.

Na primeira metade temos a impressão que o filme vai lidar muito bem com uma alternância entre momentos mais crus (a interação entre os personagens com os espaços) e momentos mais contemplativos (as montagens poéticas envolvendo a percepção da protagonista), mas aos poucos a obra vai sei deixando levar por meros momentinhos bonitos com música ao fundo.

Momentos que seguem uma lógica contemplativa interessante, mas parecem interessados apenas em propor imagens “reflexivas” de modo superficial.

Em seus piores momentos, Nomadland vira uma espécie de “Kelly Reichardt for dummies”. Parte de uma temática e de uma forma que lembra muito o cinema da Reichardt, mas enquanto nos filmes dela essa trajetória vai se tornando um pouco mais austera, vai integrando essa marginalização ainda mais na sua forma (a presença dos personagens vai se dissolvendo naqueles espaços de algum modo), aqui o tom periga cair em uma lógica de cinema autoajuda. Os dramas da personagem vão ficando mais didáticos e, a sua crise, até mais oscarizável.

Querendo ou não, é um filme que reflete muito bem a tendência atual da academia em pegar obras com um formato mais “artístico” e “intimista” – como Moonlight (2016), Roma (2018) e La La Land (2016) -, mas que tendem a suavizar algumas pretensões que, de início, soam mais radicais. Como se a Academia, atualmente, buscasse uma espécie de meio-termo entre arte e indústria. O que muitas vezes dá certo – particularmente gosto de Parasita (2019) e de Green Book  (2018) (que poderia se encaixar nisso até certo ponto) -, mas que talvez esteja se tornando uma espécie de demanda previsível. 

Tudo isso, a longo prazo, até me parece ter um lado muito positivo. Estes filmes têm suas próprias qualidades e, ainda, podem abrir os olhos de algumas pessoas para um outro tipo de cinema. A questão é que podemos estar diante de uma possível equação: pegar a forma de um “filme de cannes” e traduzir para essa gramática cinematográfica norte-americana.

O curioso de Parasita é que ele era uma uma espécie de “dois em um” nesse ponto. Explorava vários gêneros e possuía uma dinâmica muito prazerosa, mas mantinha certa radicalidade nas suas resoluções. 

O filme de Chloé Zhao tem ótimos momentos (principalmente nos dois primeiros atos), mas com certeza nos remete diretamente a esse modelo. Ao mesmo tempo que Nomadland traduz muito bem toda a atmosfera do seu tema, o filme, a partir de certo ponto, explora essas temas com um lirismo padronizado. A caracterização realista se mantém, porém a obra vai perdendo sua força na medida em que se entrega a essa fórmula.