O FIM DA VIAGEM, O COMEÇO DE TUDO (2019): Jornada metafísica

Kiyoshi Kurosawa revela o sagrado implícito na realidade

 

Kiyoshi Kurosawa é famoso por seus filmes de terror e suspense. Suas narrativas, além de apresentarem um tom sobrenatural, lidam com questões existencialistas implícitas no cotidiano da sociedade contemporânea. Os filmes do cineasta transitam por diversas camadas dramáticas e comportamentais em que o cinema de gênero atua como um elemento central que escancara inquietações universais.

Apesar deste novo filme do diretor japonês não possuir um tom sobrenatural óbvio, fica evidente que, ao longo da história, existe uma metafísica muito reveladora no trajeto da protagonista. 

O Fim da Viagem, O Começo de Tudo conta a história de Yoko (Atsuko Maeda), uma jovem jornalista que está no Uzbequistão gravando um episódio para o programa de variedades que apresenta. Em meio a diferenças culturais e problemas durante as filmagens da atração, a personagem se vê aprisionada em uma solitária experiência de desolação no decorrer da viagem.

Desde o início do longa, Yoko passa por diversas provações. Problemas nas gravações e situações de desconforto que trazem um grande sofrimento emocional para a protagonista. Em certo momento da história ela é obrigada a se submeter a um brinquedo em um parque de diversões. Uma jaula de aço que faz seu corpo girar incontrolavelmente. Uma imagem de aflição que, de algum modo, sintetiza o trajeto da personagem.

Durante boa parte do filme, Yoko se submete a esses movimentos hostis do seu meio. Ela não fala a língua do país, não conhece ninguém, se perde facilmente em lugares desconhecidos e todos ao redor julgam sua aparência. Mas na medida em que ela vai absorvendo esse sofrimento emocional, na medida em que ela vai, cada vez mais, ficando sozinha com si mesma, Yoko também passa a construir uma nova relação intuitiva com o espaço ao seu redor. 

Nesse sentido, o filme propõe uma jornada mística bastante clara. Uma jornada que começa com um sofrimento pontuado por diferentes situações de incômodo durante o trabalho da protagonista como jornalista, passa, inclusive, por uma literal perseguição por agentes da lei, e culmina em sutis novos estados de consciência. 

Novos estados de consciência que podemos perceber mais claramente em dois momentos chaves da obra. Primeiro, na  cena em que Yoko, ao visitar um antigo teatro, intui uma energia peculiar no ambiente e, de certo forma, encontra-se com si mesma cantando no palco. Uma projeção fantasiosa que se materializa nesse lugar de estranhamento.  Segundo, na sequência final do filme, uma cena que remete diretamente a natureza metafísica do cinema de Roberto Rossellini em que a protagonista percebe o sagrado implícito em uma realidade bruta.

Nesta sequência, Yoko avista a cabra branca que havia salvado em uma cena anterior – uma imagem, agora, que remete a uma pureza idílica entre as pedras e a vegetação – e canta, mais uma vez, uma versão japonesa de “Hino ao Amor”. No ápice final da canção, vemos um plano das montanhas e um close de Yoko cantando diretamente para a câmera; revelando, desse modo, uma comunhão enigmática entre a personagem e o espaço em que ela se encontra. 

É inegável que Kiyoshi Kurosawa, em O Fim da Viagem, O Começo de Tudo, constrói uma narrativa de tom naturalista e até mesmo cru em diversos aspectos. O que contribui muito para todo o clima hostil que a protagonista experimenta. Mas o filme acaba encontrando, a partir desses dramas íntimos de Yoko, pequenos momentos de transcendência que tiram a sua força esotérica justamente desse realismo.

O minimalismo dessa abordagem remete diretamente a O Sétimo Código (2013). Um outro longa do diretor em que a mesma Atsuko Maeda percorre um caminho narrativo aparentemente simples, mas bastante sutil em sua abordagem realista. Uma abordagem que, ao rejeitar um drama evidente, preza por certas minuciosidades da encenação. Pequenos detalhes e ações da protagonista que ganham novas dimensões a partir do acúmulo de gestos cotidianos. 

Os dois filmes se elaboram a partir desse acúmulo para, ao final, anunciarem uma quebra de expectativa que transcende o mundo terreno da narrativa. O Sétimo Código (2013) faz isso através de uma relação direta com o cinema de gênero (um drama sobre a solidão que é, também, um filme sobre espionagem) e este O Fim da Viagem, O Começo de Tudo faz isso ao estabelecer uma inspiradora conexão entre a rispidez do périplo da protagonista e um encontro sugestivamente espiritual com si mesma.

Parece imprescindível afirmar que Kiyoshi Kurosawa, seja por estes dois trabalhos que dialogam entre si, seja por seus últimos filmes de modo geral, é um dos diretores da atualidade que melhor assimila o oculto em suas mais variadas dimensões. Uma relação absolutamente sofisticada entre as possibilidades sensoriais do cinema e reflexões sobre os modos de vida da sociedade contemporânea.