Em filme mórbido, Hong Sang-soo faz da presença um elemento fantasmagórico
.
HONG SANG-SOO: UM CINEMA DE PRESENÇAS
Parece redundante afirmar que os filmes de Hong Sang-soo são melancólicos. O sul-coreano – um dos diretores mais produtivos da atualidade – construiu boa parte de sua filmografia com obras que tratam sobre a solidão, a incomunicabilidade e, em última análise, o fracasso humano.
Mas é inegável que, de uns tempos para cá, alguns de seus longas tem se focado em uma tristeza impiedosa cada vez mais peculiar. Uma abordagem que integra a escassez dos elementos de produção e a simplicidade das histórias com a maneira que essas narrativas são filmadas. Um elemento cada vez mais cru e até documental na relação com a câmera que reforça uma aflição implícita na vida dos personagens.
A Câmera de Claire (2017)
Filmes como O Dia Depois (2017), Na Praia à Noite Sozinha (2017) e A Câmera de Claire (2017) evidenciam um momento mais minimalista do diretor. Uma fase de sua carreira em que o registro – a potência da imagem pela imagem, a força de uma representação que rejeita complexas camadas narrativas no roteiro – articula uma potência desoladora única.
Nesse sentido, o cinema de Hong Sang-soo tem se tornado um cinema sobre presenças. A Câmera de Claire (2017) é um trabalho que revela isso até mesmo na sua temática. A imagem e o registro, no filme de 2017, são a base para uma história muito simples sobre a capacidade transformadora de um simples olhar.
Se antes o diretor construía um filme sobre uma lógica de ciclos narrativos, de projeções da própria história que se transformava em uma espiral de acontecimentos inusitados, agora existe uma centralização muito maior na simplicidade das premissas.
Ainda é possível perceber a dinâmica de núcleos espelhados (mesmas situações que se repetem, personagens que refazem o trajetos de outros), mas é indiscutível que essas últimas obras revelam um gosto pelo essencial. Uma vontade em se satisfazer com argumentos mínimos. Pequenas ações e poucas movimentações (os espaços em cena estão se tornando cada vez mais limitados) que integram o potencial de um registro muito simples e direto aos temas habitualmente tratados pelo artista.
.
ENTRE A BANALIDADE E O SIMBÓLICO
Em O Hotel às Margens do Rio (2018) essa relação minimalista com o registro fica ainda mais clara. O longa narra um dia na vida de um pequeno grupo de personagens em um hotel. Um poeta que encontra seus filhos. Uma mulher, que ao que tudo indica foi traída por um homem, que é reconfortada por uma amiga.
O diretor não segue a evolução de nenhuma dessas histórias, mas foca todo o filme em pequenos momentos que envolvem a interação entre essas pessoas. Outra vez, algo que, definitivamente, já faz parte do seu método de modo geral. Porém, agora, tudo se estabelece em um certo imediatismo, em ações e relações presentes.
O passado ainda é um fantasma que assombra as decisões do agora, mas não mais arbitrariamente como em obras anteriores. Os personagens ainda estão condenados a uma desolação que é da natureza humana, mas o movimento dessa sentença se dá por pequenos vislumbres do que é corrente. Gestos e conversas que acontecem aqui e agora. Ações que soam banais e desimportantes – uma conversa sobre a neve, um cochilo em uma cadeira – justamente por evidenciarem uma simplicidade melancólica. Um ato corriqueiro que remete a uma fragilidade que nunca se manifesta por completo.
O Hotel às Margens do Rio (2018) é fundado sobre uma relação simbólica muito ambígua entre as imagens que propõe (o rio, o hotel, a evidente solidão dos personagens) e a banalidade dos atos em cena. Quando as personagens de Kim Min-hee e Song Seon-mi conversam à beira de um rio, em uma paisagem completamente branca e chapada, uma paisagem que rejeita qualquer ideia de horizonte, estamos diante tanto de uma imagem simbólica (a ausência de um cenário e de uma perspectiva) como de uma conversa serena e corriqueira entre duas amigas.
O diretor, em sua encenação, busca o registro espontâneo – a presença em sua natureza terrena e material – como também alcança certo vislumbre alegórico. Tudo com uma sutileza muito característica, já que a banalidade nunca é romantizada ou idealizada. Não existe uma apreensão óbvia por esses “vislumbres do cotidiano” como tende certo cinema de caráter poético mais explícito.
Pelo contrário, a banalidade, no cinema de Hong Sang-soo, é evidenciada em sua insignificância. Vários diálogos e ações, literalmente, não levam a nada. Não existe uma verdade final que será revelada ou uma grande redenção que irá explorar um novo significado para a vida dos protagonistas. O que testemunhamos são vestígios de uma jornada. Marcas que nunca se revelam por completo, mas irrompem de um jeito ou outro. Seja em uma frase dita para alguém, um gesto que deixa escapar um sentimento, uma ação que revela uma emoção implícita.
Tudo é concreto, mas ao mesmo tempo fantasmagórico. Personagens somem de vista e depois ressurgem. O espaço físico nunca é definido por completo. O tempo passa de uma forma peculiar. Existe, no longa, uma dimensão mística velada no modo em que cada indivíduo parece alienado em um mundo próprio, em uma dimensão particular que é, aparentemente banal, mas ao mesmo tempo evidencia o peso de acontecimentos que não vemos. Evidencia, acima de tudo, o fim de um jornada: seja em sentido literal na pulsão de morte do poeta, seja nas dores afetivas da personagem de Kim Min-hee. Um espectro mórbido e negativo que ronda tudo e todos.
.
A SUGESTÃO DO RELATO
Os personagens, em O Hotel às Margens do Rio (2018), são construídos a partir de meras sugestões. Mal conhecemos os acontecimentos na vida dos protagonistas que antecedem o dia em que o filme se passa. Existe apenas a indicação de um certo peso do passado, uma bagagem emocional que cada um carrega.
O poeta que se encontra com os filhos sente uma inexplicável premonição de morte. A mulher que se encontra com a amiga está traumatizada devido o acontecimento em uma relação amorosa que nunca é explicado. Não existem formalidades na composição dos personagens. Somos, de algum modo, lançados em uma intimidade que não conhecemos. Uma intimidade em que apenas as ações presentes nos revelam suas intenções.
Nem mesmo a maneira como o diretor filma as cenas faz questão de formalizar suas sequências. Boa parte da história é narrada com uma câmera na mão que apenas segue o que está a sua frente. Uma câmera que preserva uma serenidade (não faz movimentos bruscos, acompanha tudo com certa ternura), mas ainda assim é bastante expressiva em sua rispidez, em uma abordagem crua que tira a vida de tudo o que está a sua frente.
O filme é formado apenas por indícios. Conversas que ora soam rancorosas (especialmente as que envolvem o núcleo familiar do poeta e dos filhos), oram soam nostálgicas e afetuosas. O longa nunca aponta para um lado só. Definitivamente ele mantém o seu tom melancólico, especialmente no que envolve uma falta de perspectiva para os dois personagens principais, mas nada é exatamente justificado.
O Hotel às Margens do Rio (2018) se interessa pelos resquícios dessas vidas, se interessa não só pelas imagens que vemos, mas por aquelas que são sugeridas nas lembranças e nas conversas. Como quando Kim Min-hee diz que gostava de olhar a neve pela janela com seus colegas de escola e seu professor dizia que eles pareciam cachorrinhos contemplando o tempo. Ou quando os filhos de Ki Joo-bong falam sobre sua mãe e a época em que foram abandonados pelo pai.
Toda essa relação de testemunhos, no filme, ganha uma natureza visual a partir dos seus relatos. Como se a imagem sempre chapadas (seja do preto e branco ou seja do horizonte com a neve, da falta de uma perspectiva próxima) permitisse que novas cenas fossem propostas. Cenas que não foram filmadas, mas que atuam como esses indícios nos diálogos.
Imagens de uma lembrança que, novamente, se fundamentam apenas na presença de quem está ali. O filme não possui flashbacks, se foca na imagem presente, mas mesmo assim a sugestão do passado é um espectro que transforma as figuras em cena em fantasmas vagantes.
.
UM CINEMA ESSENCIAL
A busca de Hong Sang-soo por um cinema elementar revela sempre novas surpresas. Mesmo que, aparentemente, o diretor tende a minimizar o seu processo, é justamente nessa pretensão pelo essencial que ele nos revela a complexidade e a grandiosidade do seu método.
Uma grandiosidade compartilhada com grandes mestres – Yasujiro Ozu, Kenji Mizoguchi, Andy Warhol – que também buscavam esses lampejos no que é fundamental, que tiravam de meras premissas obras de tamanho imensurável, que faziam de simples presenças um mundo de revelações absolutamente estimulantes.
São filmes como O Hotel às Margens do Rio (2018) que revelam que estamos diante de um dos maiores nomes do cinema mundial. Um cineasta, infelizmente, ainda pouco conhecido fora de alguns círculos mais específicos da cinefilia, mas que definitivamente já tem seu lugar mais do que garantido na história do cinema.