Yorgos Lanthimos transforma a impulsividade de seus personagens no princípio norteador de seu filme
Não sou grande fã do cinema de Yorgos Lanthimos. O que mais me incomoda em seus filmes é a maneira como tudo se limita a um jogo de significados implícitos. Tudo é carregado com uma espécie de comentário social ilustrativo submisso a um pretenso grande tema. E nisso, a abordagem sempre rígida e solene do grego, torna o drama presunçoso. Como se, através de alegorias e relações de estranheza forçadas, o diretor escancarasse alguma grande verdade cruel sobre a humanidade. Quando, na verdade, usa desses elementos como um artifício meramente ilustrativo para tornar suas narrativas bizarrinhas.
Em A Favorita (2018) é possível perceber essa lógica de uma obra trancada em um princípio próprio: o filme forja um universo de funcionalidades muito específicas. Mesmo que estejamos diante de um reconstituição de época, a obra caracteriza seus personagens e seu ambiente de maneira peculiar. Da evolução narrativa singular (as sequências se fecham como pequenos sketchs pontuais) à abordagem formal daquele mundo (o polêmico uso das grandes angulares, a montagem apressada e, em alguns momentos, sobreposta) fica claro que contemplamos mais um sistema fechado de Lanthimos.
A diferença essencial é que os estímulos, agora, nascem de uma relação muito mais independente com as suas referências – a comédia de costumes, principalmente – e não de um comentário velado ou um subtexto espertinho que, como nos trabalhos anteriores, carregava uma pompa vazia ao evidenciar a sordidez humana.
O longa se passa na Inglaterra do século XVIII e narra o embate entre Lady Sarah (Rachel Weisz) e Abigail (Emma Stone) para ganhar a confiança de uma temperamental Rainha Anne. Na medida que o conflito entre as personagens se excede, o filme assume uma inconsequência que afeta todos os seus entornos.
O ponto mais forte de A Favorita (2018), consequentemente o que melhor o diferencia dos trabalhos anteriores de seu realizador, é o modo em que o longa está sempre se reformulando. Lanthimos assimila a impulsividade das suas personagens como o princípio norteador do seu experimento. Nesse sentido, elementos narrativos que antes eram confinados a austeridade de um grande tema, agora são mediados por uma comédia ágil e espirituosa.
Não que o filme rejeite um tema. No embate entre as protagonistas existe uma evidência que interessa muito o diretor: um individualismo que serve como indício para a natureza primitiva e imoral do ser humano. O caso é que, dessa vez, o cineasta articula uma relação mais direta com o mundo. Os atos de Lady Sarah e Abigail afetam aquele universo de maneira concreta, já que os interesses das personagens geram um descontrole que reverbera nos demais elementos da obra.
Apesar do filme ainda conservar o aspecto laboratorial de seu diretor, o longa está muito menos preso às suas convenções de praxe. Ele constantemente brinca com os comentários que propõe e nunca limita suas sequências a resoluções burocráticas que culminariam na resposta fatalista final de possíveis reflexões sobre a sociedade. Muito provavelmente o fato do grego não ter escrito o roteiro de A Favorita (2018) ajudou nessa autonomia da abordagem. O cineasta, finalmente, alcançou um desapego em relação a suas mediações cerimoniais e, o que antes era um método esquemático, se transforma na unidade de uma mise-en-scène eficiente
A cada nova investida de Lady Sarah e Abigail, o filme se reordena dentro do próprio universo. Um mundo, com certeza, limitado em vários aspectos – a construção das protagonistas as encerra em uma repetitiva busca obsessiva – mas que assume esse bate e volta como a principal dinâmica de uma relação de entretenimento muito bem dosada. Uma comédia que usa e abusa dos próprios princípios sem nunca os desgastar, visto que rejeita submetê-los a uma simples declaração dos seus fins.
O que interessa é muito mais o meio. As maneiras e as peculiaridades em que cada nova ofensiva é planejada. Rachel Weisz, Emma Stone e Olivia Colman exploram um instigante arsenal performático em suas interações, reorganizam suas próprias personas no decorrer da narrativa. Coisa que até o segundo ato se limita ao jogo espirituoso da comédia, ao tom até mesmo jocoso das suas situações – é extraordinária a forma como Colman evidencia essa fragilidade imposto da Rainha, essa ambiguidade entre a vítima e, ao mesmo tempo, a articuladora principal daquele embate – e que logo ganha ares de suspense.
Ou seja: mesmo em sua aproximação com os gêneros que trabalha, A Favorita (2018) não se limita. Toma essa impulsividade da natureza humana como seu principal objeto de estudo e agrega isso a sua estrutura. Seja pela dinâmica entre a comédia e o suspense, seja pelo seu descontrole calculado ou pela abordagem formal daquele mundo.
Ainda que a decupagem de Lanthimos se relacione diretamente com o tema de um filme de época – o formalismo, a iluminação atenta aos detalhes, os planos abertos que reiteram a grandiosidade do espaço – o diretor propõe momentos que dialogam diretamente com essa inconsequência norteadora da obra que desafia seus próprios limites.
A montagem e a maneira como os planos de reação se articulam refletem essa impulsividade. Sequências rápidas, cenas sobrepostas com outros sons, flashbacks pontuais. Apesar de relatar uma história linear, o filme é cheio de estímulos. Os diálogos mais simples são abordados de forma ágil e sempre com alguma punchline que fecha a sequência com graciosidade. Uma desenvoltura que, ainda por cima, agrega a riqueza icônica dos elementos da corte (as peculiaridades dos personagens e das situações), concebendo um ambiente mais do que propício para essa desordem equilibrada proposta.
Um dos recurso mais marcante no que se refere a essa abordagem radical é o uso de uma lente grande angular que, sem qualquer cerimônia, deforma os ambientes em certos momentos da narrativa. A escolha, que tem gerado algumas polêmicas, funciona no início da obra ao propor uma quebra de perspectiva que dialoga diretamente com seu tom impulsivo e inconsequente. A desfiguração evidencia a maleabilidade de um modelo que, apesar de ser tradicional em suas aparências – a tradição do filme de época, as analogias com Barry Lyndon (1975) – faz questão de rejeitar qualquer referência mais protocolar. Entretanto, no decorrer do longa, a repetição do procedimento se torna repetitiva e acaba soando como um capricho. Felizmente, nada que afete os pontos positivos do trabalho.
A Favorita (2018), na melhor das hipóteses, marca um novo momento na carreira de Yorgos Lanthimos. Um filme que se livra de qualquer convenção autoimposta e se sustenta pela potência da sua encenação propriamente. Levando em conta os trabalhos anteriores do diretor, é de se reconhecer que o feito traz vida para um filmografia, até agora, bastante limitada.