SKATE KITCHEN (2018): Luzes da cidade

Diretora transforma apelo documental em abordagem sinestésica

Apesar de Skate Kitchen propor uma abordagem realista, o longa de Crystal Moselle constrói um universo próprio bastante singular. A articulação documental da diretora, conciliada com um drama coming of age, estabelece uma dimensão lírica de ares sinestésicos muito específica.

O filme segue a jovem Camille, uma skatista que se junta a um grupo de meninas também skatistas de Nova York. Em meio a desentendimentos familiares, confusões amorosas e outras descobertas, a obra propõe tanto um drama pessoal como uma radiografia dos espaços e meandros da cidade.

A diretora não parece interessada em impor um drama, mas concebe as relações de sua protagonista a partir de uma relação com o cotidiano. Um efeito naturalista que, pela sua temática, pode até remeter a um diretor como Larry Clark, mas, no caso de Moselle, a investida sensorial guia a narrativa até mais do que os possíveis conflitos dramáticos.

Diferente de um filme como Kids (1995), que usa do apelo documental para localizar um aspecto cru dos seus personagens e do seu espaço, Skate Kitchen dispõe dessa mesma espontaneidade (o uso não-atores, a câmera em uma relação sempre próxima e íntima) para conceber uma ideia de suspensão e contemplação.

O drama é bem contextualizado e articula um relato que, além do coming of age, lida muito bem com as particularidades de uma experiência feminina em um meio majoritariamente masculino, mas o ponto forte do trabalho de Moselle é como ela transforma a efemeridade do cotidiano em uma experiência de sentidos.  Para isso, o filme nunca abandona uma estilização característica. Usa muito bem da luz natural e de uma qualidade solar do espaço público para revelar pequenas minúcias visuais. Elementos que, arranjados em montagens não-lineares e imprevisíveis, nos transportam para uma dimensão rítmica característica.

A diretora aposta em escolhas que reforçam essa ideia de descoberta não apenas em sua dimensão dramática, mas em suas aptidões formais. Transforma a instabilidade da câmera em um movimento leve que passeia por rostos, olhares e texturas. Uma disposição contínua que independe do momento narrativo em si: o filme possui um mesmo temperamento imersivo que remodela seus ambientes.

Mesmo quando, de algum modo, o trabalho simula a estética versátil e realista de um vídeo de stake (as câmeras na mão dentro da pista, os planos que seguem as manobras de perto), ele relocaliza esse processo dentro de um jogo poético. O que, em vários sentidos, remete a Paranoid Park (2007), filme de Gus Van Sant que propõe gesto semelhante: não apenas evidencia aquele entorno, mas sugere uma dinâmica poética que ressignifica uma ordem física da sua própria natureza.

Na medida em que Camille vai se integrando mais naquele novo mundo – ela abandona sua mãe e passa a conviver com suas novas amigas, se entrega a esse turbilhão urbano da grande metrópole – o filme acompanha esse mergulho de uma distância independente.

Existe uma propensão subjetiva que não está ligada, exatamente, a uma harmonia entre o olhar do filme e o olhar de sua protagonista. Mas, assim como em Gus Van Sant, a uma autonomia da câmera. Uma vida do dispositivo e da montagem que projeta um ritmo particular em tudo. Intui a propensão luminosa da cidade (o sol, os prédios, os reflexos) como um novo mundo. Todos os elementos (as personagens, os espaços) são integrantes desse mesmo método de relocalização temporal e plástica. Crystal Moselle pode até possuir uma abordagem mais realista e um pouco menos austera que Van Sant, mas fica claro que o trabalho funciona a partir de uma mediação estética que perpassa aquelas relações.

O fato do longa ter surgido a partir de um curta produzido para a Miu Miu (marca de luxo de roupa e acessórias) reitera esse mote de uma perspectiva estética elaborada, de uma terceira via que vai além do mero registro. Não que exista uma lógica de grife nas imagens de Moselle, mas a cineasta usa vários efeitos (música, efeitos sonoros, slow motion) para desenvolver o seu olhar sobre aquela realidade.

Skate Kitchen conserva um realismo muito próprio das personagens e espaços que acompanha ao mesmo tempo em que conduz uma jornada abertamente estilística. Sua diretora não parece presa a um registro naturalista que, em vários casos nos dias de hoje, tende a se tornar fetichista ao sugerir uma fidelidade absoluta ao seu tema. Pelo contrário, o longa é aberto e despojado. Equilibra, com talento, o elemento factual com uma elaboração artesanal.