Em noir gamificado, cineasta reflete sobre a efemeridade das experiências contemporâneas
É difícil definir o tema do novo de filme de David Robert Mitchell. O realizador deixa claro seu gosto pelo cinema de gênero em Under the Silver Lake (2018), mas o trabalho nunca se limita a uma só filiação.
Diferente de Corrente do Mal (2014), que operava dentro uma estrutura de horror bastante clássica, o filme de 2018 parte de uma variedade de gêneros – suspense, comédia, noir, terror – para narrar uma peculiar jornada em que seus temas, arbitrariamente, vão brotando do mais do que sugestivo terreno hollywoodiano.
O que nos remete a filmes como O Perigoso Adeus (1973), Choose Me (1984) e Cidade dos Sonhos (2001). Longas que, diretamente, também lidam com essa lógica investigativa de Los Angeles. Como se a cidade, por si só, já carregasse um mundo de mistérios onde o imaginário encantador e ao mesmo tempo sinistro do cinema estivesse a serviço de uma estrutura noir cíclica e heterogênea. Tanto em Under the Silver Lake (2018) como nestes outros filmes não existe uma linha narrativa exatamente retilínea, mas um constante movimento circular pela cidade e seus temas.
O filme conta a história de Sam (Andrew Garfield), um jovem que, após o desaparecimento de Sara (Riley Keough) – uma mulher que ele encontrou apenas uma vez – parte em sua busca em uma jornada obsessiva e fantasiosa.
O protagonista, desde o início, é movido por referências aleatórias. Pistas que ele vai encontrando – ou mesmo projetando – nos mais bizarros elementos: sinais urbanos de um código de moradores de rua, músicas, videogames, revistas, programas de TV. Sam é obcecado por encontrar mensagens subliminares em tudo. Uma referência que se conecte com outra e, desse modo, leve a uma resolução.
Nesse sentido, o filme cria um comentário bastante direto – e até autoirônico – sobre uma geração que é, constantemente, dependente da cultura a sua volta. Uma iconografia variada em seus formatos (os artefatos de Sam vão de uma caixa de sucrilhos a revistas antigas de videogame) que compõe uma vida interessada apenas no significado imediato de tudo.
Existe uma autoconsciência no filme de Mitchell que flerta tanto com um maneirismo depalmiano em seus delírios hitchcockianos (a busca pela figura feminina, as locações como um espaço audiovisual estimulante e, como diria Thom Andersen, de caráter altamente turístico) como com um deboche dessa própria realidade.
Tudo no filme é arbitrário. Mesmo a motivação do protagonista é incerta: ele, literalmente, é um jovem vagabundo que ficou excitado com sua vizinha e está atrás dela.
Até a maneira como as pistas vão surgindo é aleatória. O longa abre subplots que algumas vezes não levam a lugar algum. O trabalho não está preocupado em se fechar em um arco dramático onde todas as suas pontas se conectam, mas em evidenciar uma efemeridade da experiência cotidiana contemporânea. Uma experiência que, cada vez mais, preza por seu valor instantâneo.
Ao assumir o seu lado absurdo, Under the Silver Lake (2018) se preocupa muito mais com as possibilidades fantasiosas, grotescas e até imorais de sua jornada, do que exatamente em se conter em uma unidade narrativa. Ainda que, inegavelmente, essa unidade exista na maneira em que tais elementos dialogam entre si. Podemos não estar em um mundo linear, mas Mitchell constrói uma lógica própria onde toda aparição (novos personagens, espaços secretos da cidade que vão sendo revelados) possuem uma mitologia particular que, de forma ou outra, se organizam organicamente ao redor do percurso principal.
As sequências, ao mesmo tempo que possuem uma construção individual muito forte (cada lugar tem a sua idiossincrasia, o seu elemento próprio, a sua temática), se articulam em uma mesma rede de possibilidades.
Apesar do jogo aleatório assumido, o diretor não está interessado simplesmente no efeito referencial isolado de cada coisa, mas na investigação heterogênea do imaginário hollywoodiano, na exposição desses elementos que, por mais diferentes e aleatórios que sejam, irão, de alguma forma – quem sabe até automaticamente no dias de hoje – se comunicar entre si.
Não seria essa a paisagem millennial definitiva dos nossos tempos? Produtos e mídias que, isoladas, não parecem fazer muito sentido entre si, mas a partir de uma experiência de espectador-jogador-leitor, inevitavelmente, são assimilados em uma mesmo dimensão cognitiva?
Under the Silver Lake (2018) não deixa de ser um Jogador Nº 1 (2018) lynchiano. O jovem sem perspectiva que coloca o próprio corpo como avatar de uma realidade convidativa justamente pela variedade de sensações que ela oferece. Abandona as rédeas da sua vida da mesma forma que se perde na fase de um videogame. Não existe um valor implícito em nada. Sam visivelmente possui uma moral ambígua: bate em crianças, odeia sem-tetos, é nada mais do que um stalker depravado. Um homem adulto que nunca cresceu. O que torna o jogo ainda mais sem limites.
Tudo o que conta em Under the Silver Lake (2018) é uma relação imediata e sem conclusões. Um GTA cinematográfico em que o sexo, a falta de empatia e a obsessão pelos estímulos a sua volta constroem um caminho onde o prazer momentâneo, a curiosidade pela curiosidade, o fascínio pelo fascínio, são as únicas saídas que importam.