A CASA QUE JACK CONSTRUIU (2018): Exercício de negação

Em comédia absurda, Lars von Trier propõe a negação de todos os valores

A Casa Que Jack Construiu (2018) não é um filme que deseja simplesmente chocar. Com toda certeza o repúdio gratuito faz parte do projeto não só de cinema, mas de vida do seu diretor.

Porém, este último longa, mesmo partindo de um explícito movimento de violência gráfica, logo se transforma em um peculiar exercício de negação de significados, de uma radicalidade onde corpo e matéria compartilham de uma mesma dimensão trivial.

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LARS VON TRIER: HOMEM DO ENTRETENIMENTO

Muito mais do que um simples provocador, Lars von Trier é um homem do entretenimento. Seu cinema, que é tido por muitos como radical tanto em seu formato como em seu conteúdo, pode até se fundamentar em uma busca pelo choque, mas, ainda assim, funciona, em última instância, como uma experiência de contato com o espectador. Uma tentativa de atração que lança mão de uma variedade de recursos.

Mesmo que se utilizando de métodos que soam experimentais ou hostis – o Dogma 95, em sua essência, rejeita elementos que seriam bastante convidativos no cinema – o diretor tira de tais abordagens um apelo muito particular. Uma relação que vai desde a aproximação com o cinema de gênero (sendo o horror e, principalmente, o melodrama dois grandes mediadores) à variações espaciais que constantemente renovam a natureza cênica ao, teoricamente, rejeitá-la – Dogville (2003) e Manderlay (2005) são, visivelmente, os casos mais radicais. O cineasta utiliza de tais desconstruções para forjar, paradoxalmente, o seu elemento de atração.

Ou seja, von Trier não é exatamente um cineasta que poderíamos chamar de marginal, mas um realizador que transforma elementos de negação do cinema (as leis do Dogma 95, a ausência de cenário, a arbitrariedade com que seus dramas se resolvem) em artifícios indiscutivelmente cinematográficos. Justamente por expor seus recursos sem meias palavras, por utilizar essa autoconsciência como uma espécie de hipersignificação ilustrativa dos elementos em jogo, o dinamarquês consegue sempre estabelecer um elo de apelos muito didáticos com o espectador. Ou, ao menos, mantê-lo minimamente interessado no que ele tem a dizer e na maneira com que pretende fazer isso.

Lars von Trier é um homem do entretenimento não porque busca fazer filmes que, de maneira óbvia, entretenham, mas por sempre procurar essa atualização na maneira em que se expressa. Mesmo seu caráter provocativo e suas declarações polêmicas são maneiras de estar sempre em voga. Quanto mais o cineasta rejeita o show business, mais ele se torna um showman. Tanto no sentido de aplicar novas variações a suas investidas artísticas como no de se tornar uma espécie de exibicionista oportunamente maldito.

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A NEGAÇÃO DE TODOS OS VALORES

Tendo em mente essa paradoxal, porém muito adequada lógica atrativa da rejeição, A Casa que Jack Construiu (2018) propõe o que é, muito provavelmente, o ápice desse pensamento. O principal apelo do longa é a negação de todos os valores. A rejeição de qualquer humanidade como mote para uma comédia do absurdo.

O filme narra doze anos na vida de Jack (Matt Dillon), um psicopata que não está preocupado em justificar seus atos e se insere em uma espiral de violência doentia completamente gratuita.

Já de cara o trabalho soa como uma obra meramente insultuosa. O diretor pega o que existe de mais obviamente doentio (matar e torturar mulher e criança, atropelar idoso, tudo sem qualquer justificativa) para lidar com o efeito gráfico imediato disso. A exploração pela exploração. Um exploitation à South Park claramente interessado no entretenimento grotesco de suas resoluções.

A partir desse movimento, o filme nunca parece satisfeito. Jack não se contenta em simplesmente matar, mas precisa tanto reinventar seus modos (a caça onde ele mata a mãe e os filhos, a bala full metal jacket que exterminaria várias cabeças ao mesmo tempo) como responder a um instinto homicida que é mais forte do que ele (o atropelamento impulsivo da idosa na rodovia, a fome pelo sangue de um modo geral). Além, é claro, de certos caprichos que começam a ampliar a dimensão ritualística  e sádica das mortes: as fotografias das vítimas, o discurso do homem branco vitimizado que ocorre, justamente, antes de matar uma mulher.

O personagem precisa ir cada vez mais longe nessa obsessão doentia até o ponto onde tudo, gradativamente, vai perdendo o seu sentido. A obra está constantemente se frustrando. Quanto mais doentios os métodos de Jack ficam, menos ele parece propenso a se satisfazer. Consequentemente, todas as experiências vão se tornando igualmente efêmeras e sem valor.

É justamente dessa frustração, dessa rejeição completa por qualquer significação daqueles atos extremos – eles são tão gratuitos que o simples insulto pelo insulto passa a ser o próprio objeto ridicularizado, visto que o diretor foca justamente no que é mais moralmente errado possível – que o trabalho tira a sua temática principal.

Quando nada mais possui valor, toda a matéria do mundo se torna trivial.

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A BANALIZAÇÃO DA MATÉRIA

Não só os personagens e as vítimas de Jack perderam sua individualidade nesse mundo, mas qualquer dimensão da matéria não possui mais significado algum para o protagonista. Não é à toa que ele não consegue se decidir por qual material construir sua casa, já que todos são igualmente banais. Nenhum possui, para os olhos do personagem, qualquer peculiaridade. Da mesma forma, os corpos vão se amontoando no freezer como se fossem simples produtos. Objetos empilhados sem qualquer importância. Formas maleáveis que o psicopata tenta, pelo menos em alguns momentos, tirar um mínimo de sentido.

A cena em que Jack, literalmente, molda a figura do menino que ele matou é das mais esclarecedoras nesse ponto. O personagem esculpe daquela massa morta um sorriso. Tenta, inutilmente, tirar um significado daquela matéria em que ele não vê valor algum.

A banalização da morte e da violência no filme não está interessada, diretamente, em um simples efeito de choque, mas em uma artificialização dos componentes do mundo. No ato final, os próprios corpos congelados se tornarão o material da casa. Outra vez, tudo pertence a uma mesma dimensão irrelevante. Um mundo onde não existem mais significados, onde qualquer hierarquia moral ou material foi banida.

Mesmo o formato ensaístico do filme lida com essa ideia ultra flexível de seus objetos. A variedade de formatos – fotografias, pinturas, imagens de arquivo – se adequa a essa indiferença pelos conceitos implícitos em tudo. Inclusive a informalidade na maneira em que von Trier filma – sua característica câmera na mão, sua espontaneidade na decupagem da cena – faz ainda mais sentido nesse mundo descentralizador por natureza.

Se por um lado todo esse movimento de anti-significação, de banalização moral de todo corpo e matéria, dá liberdade para o diretor trazer o discurso que deseja – sendo o ápice disso a fala em que Jack vê grande valor na construção pela destruição e o filme joga com imagens do regime nazista – por outro, a figura de Virgílio (Bruno Ganz) surge como uma espécie de contraponto.

Sempre que o personagem de Matt Dillon se prolonga em uma justificativa cínica de psicopata, Virgílio irrompe com uma provocação, algumas vezes até zombando daquele discurso misantropo barato. Bruno Ganz interpreta, em todos os sentidos, o papel do carrasco. Produz o contraponto moral que, indiscutivelmente, já começava a inflar na mente do espectador que assiste ao filme. Um espectador que, com toda certeza, Lars von Trier já esperava encontrar nesse filme, já que boa parte de toda a conversa entre os dois personagens parte dessas objeções previsíveis.

A conversa entre Jack e Virgílio funciona como uma falsa dialética. O protagonista desenterra seus absurdos enquanto o carrasco, inutilmente, o adverte com alguma reprovação. Todas inúteis. O universo que o cineasta deseja estabelecer rejeita qualquer hierarquia ou um mero senso de civilidade.

Quando, em uma reflexão sobre o fazer artístico, Jack comenta sobre sua descrença de que as atrocidades que cometemos na ficção e na arte são desejos interiores que nossa civilização não permite, ele deixa claro esse ceticismo por qualquer polarização moral. Afirma, diretamente: “Eu acredito que o céu e o inferno são apenas um. A alma pertence ao céu e o corpo ao inferno”.

Mais uma vez, a dimensão da matéria, de tudo o que é físico e concreto no mundo, se encontra igualmente amaldiçoado em uma mesma realidade obscura.

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O CORPO PERTENCE AO INFERNO

Parece um caminho nada mais do que natural que o filme termine no inferno. Após negar o valor de qualquer ato e banalizar o significado de toda matéria, o homem é condenado às profundezas. A obra pode até negar os valores morais ao integrar a visão de seu protagonista, mas o castigo é iminente. Não importa o quão abertamente insultuosos, absurdos e criminosos sejam os atos do filme, o quão naturalmente eles se comportam dessa forma, no fim das contas Lars von Trier continua apegado a um moralismo: Jack não sai impune.

É no epílogo da obra onde o diretor melhor assimila, formalmente, essa maleabilidade de estéticas e formatos. Como se, passada a estadia na Terra, o filme ganhasse ainda mais liberdade em sua abordagem. O que nos dá direito desde a uma GOPRO registrando Jack e Virgílio caminhando nas profundezas à belas construções em CGI. O trabalho vai de momentos cru e realistas a outros alegóricos.

Aqui, nas profundezas, a efemeridade dos materiais contamina o próprio dispositivo do filme. O teor ensaístico que antes operava em um jogo de montagens isoladas durante toda a obra, agora concretiza seu menosprezo pela representação diretamente em cena.

A caminhada de Jack e Virgílio é, acima de tudo, um evento gráfico. O ceticismo de von Trier passa também pela descrença do que é captado pela câmera, já que a fantasia e a contextualização daquele mundo é assumida sem qualquer unidade. O inferno é ao mesmo tempo ilustrativo e didático como cru e realista. Aberto a qualquer possibilidade estética oportuna.

Se o filme vem sendo assimilado, frequentemente, como uma descida do próprio Lars von Trier ao inferno, é inegável que, no ato final, ele torna esse movimento ainda mais espirituoso. Não existe qualquer fidelidade estética. Apenas uma variação de formas e abordagens que reforça ainda mais essa negação por uma expressão uniforme. Uma manifestação que, a todo momento, se renova, busca uma atração, um contato com o espectador através dessa variação.

Ainda que Jack, durante todo o filme, possa soar como dono do seu destino, visto os absurdos que pratica e a sorte que possui, em última instância é von Trier que faz o papel do Deus sádico. Brinca com seu personagem e o coloca em situações absurdas e arbitrárias. A cena final, quando o diretor dá uma falsa última chance para seu protagonista, é ainda mais reveladora.

Jack tem a oportunidade de escalar uma parede no inferno e chegar na outra ponta onde encontraria a salvação. O espectador até deve ficar na dúvida se o personagem terá essa chance de se salvar – confirmando, quem sabe, a imoralidade do filme em todas as suas perspectivas – ou se o diretor o condenará ao inferno. Já na metade das travessia, Jack cai e é sugado pelas profundezas.

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UMA EXPERIÊNCIA DE ENTRETENIMENTO

Pior do que um moralista, Lars von Trier é um moralista sádico. A Casa que Jack Construiu (2018) nega todo valor constituído pela civilização não como um pretenso discurso libertário, mas o ato perverso de um cineasta que visivelmente se diverte com todo esse exercício.

O longa é, antes de tudo, uma comédia sobre essa negação do que qualquer grande tratado ou reflexão existencial exposta de seu diretor. Obviamente von Trier usou de suas questões pessoais para articular vários dos elementos aí em jogo e que, colocados da forma que estão, podem até refletir sobre um niilismo do realizador, mas que, inegavelmente, serve também como belo objeto de entretenimento.

Ao tornar toda definição material e moral ultra flexível, ao banir qualquer rastro de humanidade para além do que está graficamente em jogo, o filme propõe, também, uma dimensão caricata do que representa. Uma artificialização onde o ridículo é mais presente do que o chocante.

É claro que é absolutamente compreensível as reações de revolta em relação ao filme. Porém, uma vez que o jogo é inescrupulosamente explícito do jeito que é, o caminho mais natural me parece o de se juntar ao cineasta nessa desesperada jornada e, simplesmente, desfrutá-la sem culpa.