VAZANTE (2017): O histórico como artifício

Daniela Thomas converte abordagem impiedosa em instrumento contemplativo

Vazante (2017) é uma tragédia. Ou pelo menos uma obra que tenta partir de lógicas melodramáticas para alcançar certo fatalismo histórico na sua aproximação. Mesmo que a abordagem de Daniela Thomas seja austera em vários sentidos – o formalismo academicista da câmera, o tempo dilatado das cenas, o gosto pelo preto e branco -, existe uma tônica novelesca que envolve a narrativa do trabalho.

O filme se passa nas serras de Minas Gerais em 1821,  época de decadência após a extração de diamantes na região ter entrado em colapso. A esposa de Antônio, um português dono de uma fazenda, morre no parto de seu filho. O homem então se casa com a própria sobrinha, filha do irmão de sua esposa.

A contextualização inicial do filme não deixa de ser interessante. Apesar de uma vaidade plástica autosuficiente – a fotografia em preto e branco que tem evidente gosto em expor os seus efeitos e, gradativamente, vai se tornando mais problemática -, o longa localiza bem uma certa decadência generalizada da região. Intui-se uma temporalidade muito específica. Um mal estar que contamina todos os espaços.

A diretora não parece interessada em entregar o filme logo de cara, mas passeia pelos núcleos e evidencia convenções em declínio ali em voga. A fazenda com poucos habitantes. A família desestruturada. A mãe de Antônio que se transforma nesse espectro de uma presença. O regime escravocrata em sua desumana naturalização.

Depois dessa assimilação inicial, o filme se foca na figura de Beatriz. A garota branca com quem Antônio se casou. Abandonada na fazenda pelo marido, a personagem passa a se relacionar com os espaços e os habitantes do lugar, em especial por Virgílio, um negro, filho de uma escrava que Antônio usa como objeto sexual.

Nesse momento, fica claro que a empatia da diretora se foca nas impressões de Beatriz. O filme faz o movimento arriscado de incorporar a ingenuidade da personagem em relação a esse meio. Uma inadequação que se comporta como descoberta. Aquele mundo novo, para a garota, tem ares exóticos. Ela come o mingau junto com as crianças escravas em um clima de exploração, de experiência para além do seu lugar comum de nova patroa.

O caso é que Daniela Thomas fundamenta isso em terrenos muito rasos. Nem a experiência da garota branca e nem a dos escravos é singularizada de maneira própria. Estabelece-se um tom dramático genérico aliciado pelas belezas plásticas requintadas que moviam a obra desde o início.

Vazante se revela uma narrativa forjada em elementos de um cinema de arte demasiadamente pré-calculado. Não existem razões específicas para o uso desses artifícios pretensamente sensoriais que, no melhor dos casos, potencializariam uma perspectiva peculiar daquele contexto. O que temos, basicamente, é uma atração à rede globo (a contextualização histórica  espetacularizada, a “beleza” das locações, o melodrama trágico de teoria) dentro de um formato de festival de cinema europeu.

A narrativa proposta, pelo menos em seu conceito, não é ruim. Uma história de época que, de fato, é fiel a sua contextualização impiedosa. Mas a mediação da diretora se perde na própria vaidade. Daniela Thomas deixa de lado qualquer respaldo dramático que sustentaria a proposição de uma tragédia desse calibre e usa o tema histórico como simples artifício visual.

A realizadora torna a abordagem impiedosa não exatamente uma denúncia, mas se utiliza desses elementos (os jogos de poderes, as descobertas ingênuas de Beatriz, a caracterização dos escravos) como acessórios estéticos. Mesmo que não seja intenção do filme desconstruir tais estruturas, mas justamente evidenciá-las como parte de uma tragédia colonial (e aí jaz o melodrama que nunca aconteceu), a maneira como as escolhas visuais dominam qualquer outra possibilidade acabam domesticando todas essas relações em um mesmo tom inconvenientemente contemplativo.

Não é questão de politizar um filme apolítico. Mas revelar seu uso leviano da linguagem cinematográfica como um tiro que sai pela culatra. A sua ineficiência dramática – o melodrama novelesco confinado no formato arthouse chic – limita qualquer aptidão para além da sua requintada caracterização estética. Observa-se a decadência não em tom de simples contextualização, mas de pinceladas afetadas que comprometem toda a experiência.