Apesar de propor retrato comovente, Arábia sofre com dilema formal
Diferente de A Vizinhança do Tigre (2014), filme anterior de Affonso Uchoa, Arábia (2017) assume de maneira mais direta a sua intervenção narrativa. Se o longa de 2014, dirigido por Uchoa e que contava com João Dumans como um dos roteiristas, se valia muito bem das particularidades de seus personagens, assimilava uma espontaneidade muito rica a partir de uma abordagem realista, o de 2017 (dessa vez com Dumans também na direção) encarna uma estrutura mais ilustrativa em sua progressão.
Arábia (2017) inicia com uma pista falsa: um jovem anda de bicicleta e uma música folk toca ao fundo. O plano é longo e envolvente. Mas o que soa, no início, como um coming of age, logo se transforma.
Após vinte minutos de filme, André, o jovem, encontra um caderno de Cristiano, um operário que se acidentou em uma fábrica na cidade em que os dois vivem. A partir daí, a obra se bifurca. Surge o título e o trabalho passa a narrar, através da voz off evocativa de Cristiano (como que lendo este caderno encontrado por André) parte da trajetória de sua vida até ali.
É inevitável, já de imediato, pensarmos na obra de Apichatpong Weerasethakul. Diretor tailandês que muitas vezes se utiliza de processo semelhante. Um prólogo característico com o crédito tardio e a virada da narrativa para um novo ponto. No caso de Arábia, soa mais como um simples artifício, já que a caracterização de André e do seu entorno, até ali, não propunha nada de especial. Apenas uma austeridade sugestiva e um mal-estar atmosférico sem grandes singularidades.
Após surgir o título do filme, essa abordagem austera se desfaz em alguma medida, mas nunca abandona o registro por completo. Enquanto Cristiano conta sua história e o filme mostra essas imagens, expõe os fragmentos dela, Arábia se encontra em um dilema formal que nos irá acompanhar por toda sua sua duração.
O filme fica sempre no meio-termo entre uma conceitualização mais direta da cena (a assimilação rígida do espaço e do personagem que remete aos filmes de Pedro Costa) e uma estilização ilustrativa (o uso das músicas, o tom didático de suas proposições políticas, a ficção social à Karim Aïnouz).
Existe, sim, um despojamento que enriquece muito o filme. Uma construção que intui muito bem essa fala natural de Cristiano com os acontecimentos de sua trajetória. Cria uma tensão entre a efemeridade do discurso (a vida que passa, as imagens que ficam) e uma gravidade que vai se acumulando. Mas o tom geral do filme, o efeito que fica, ao invés de particularizar aquela experiência, acaba tutelando ela em uma disposição dramática disciplinada demais.
Nessa busca por uma assimilação naturalista ambígua, existe um desvio que recusa conflitos mais diretos e internaliza muito dos seus efeitos. O que pode até soar como um elemento proposital – ainda mais se formos pensar na sequência final, quando o personagem, nas suas próprias palavras, acorda de um pesadelo que sente ter vivido até ali – mas acaba minimizando qualquer estranheza, qualquer peculiaridade narrativa mais vigorosa.
Arábia possui uma unidade, possui a vontade de espelhar nessa história tantas outras histórias, mas ao conter seus elementos a um denominador temático comum, ignora atributos específicos que potencializariam o filme. A omissão do personagem é completamente justificada por esse entorno que o engole – este parece, inclusive, ser o tema central da obra – mas existe nesse movimento uma certa passividade de toda a abordagem que amansa aquela experiência.
Em algum sentido essa passividade proposital remete aos filmes de Lisandro Alonso, mas enquanto o realizador argentino faz disso uma dimensão muito bruta e de ímpeto desolador que contamina todos os seus entornas – uma experiência que pode soar impessoal, mas se revela única em pequenos atos de seus personagens – Uchoa e Dumans ficam numa corda bamba entre essa mesma aproximação realista e uma construção instrutiva.
Os momentos mais fortes do filme são, justamente, aqueles onde essa escolha parece mais definida. Seja pelos instantes que soam menos encenados e mais desconstraídos (a cena da piada que dá o título ao trabalho, os encontros mais espontâneos entre os personagens) ou pelos mais rígidos (o único plano de Cristiano tomando sol na cadeia, as construções formais mais objetivas).
Ao buscar ser muito amplo, tanto em sua abordagem narrativa como em seu elemento temático, Arábia deixa de lado sua própria identidade. E apesar de construir um retrato de intenções inegavelmente comoventes, sofre com seus dilemas formais.