Diretor redefine um conceito de representação em novo longa.
15h17 – Trem Para Paris (2018) possui uma relação ambígua com a realidade. Ao reconstituir o atentado terrorista que ocorreu em um trem em viagem de Amsterdã para Paris em 2015, Clint Eastwood escalou os próprios homens que impediram o ataque para interpretarem a si mesmos. Muito mais do que um mero realismo inusitado que a escolha poderia sugerir, o diretor propõe uma experiência que vai além de um simples naturalismo e concebe uma dinâmica de encenação até então inédita em seu cinema.
Em um primeiro momento soa bastante natural o vínculo do filme com os longas anteriores do realizador norte-americano – Sniper Americano (2014) e Sully: O Herói do Rio Hudson (2016). A desmistificação do homem, a evidência do ato heróico como uma tarefa, uma eficiência natural de um certo contexto iminente naquele país. Mas enquanto que nos filmes de 2014 e 2016 essa desconstrução era proposta seguindo certos elementos tradicionais (atores profissionais interpretando personagens reais, caracterização dramática seguindo uma linha narrativa retilínea) – ainda que nunca submissos a uma dinâmica ideológica restritiva – Trem Para Paris expande esse processo para os aspectos estruturais da obra.
Se Sully, especificamente, é um filme sobre a impossibilidade da reencenação (as simulações que nunca conseguem recriar o ato “milagroso” do piloto que salvou a aeronave) Trem Para Paris não só aceita a limitação de uma reconstituição, mas parte justamente da indeterminação dramática (a realidade, afinal, é incerta por natureza) para redefinir um conceito de representação.
A desmistificação não se encontra mais somente na temática, na ideia propriamente do filme, mas contamina todos os seus aparatos narrativos e formais, estende-se para os dispositivo de captação e contextualização de cena. O amadorismo dos atores não prejudica a digressão das sequências, pelo contrário, concebe uma trivialidade possibilitadora que os coloca nesse espaço incerto entre reconstrução do relato e nova diegese narrativa do próprio drama que vivenciaram.
O espaço em si, nessa câmera livre que filma a Europa do literal ponto de vista de um turista, banaliza aquele ambiente a partir de uma abordagem muito transparente. O filme rejeita qualquer elemento de tensão dramática crescente e se foca em uma abordagem que intui o presente, identifica o momento sem grandes mediações. O tom aprazível e espontâneo de toda a sequência da viagem, aliás, proporciona essa presença singela, desloca aquelas figuras para um estado anti-mítico em todos os sentidos: não existem atores buscando uma grande revelação, não existe um ambiente idealizado. As coisas acontecem, simplesmente, como acontece com qualquer um.
Ou seja, não é só o personagem-herói enquanto mito que é desconstruído, desvendado em uma aproximação que o torna humano, mas toda a abordagem dramática é reduzida a um processo cinematográfico essencial. Mesmo nas cenas da infância dos personagens existe um minimalismo, uma busca pelo fundamental que se funda em um conceito de cena muito cru. Uma método que pode soar anti-dramático e que até rejeita elementos de atração já empregados pelo cineasta, mas que claramente não está interessado em grandes manifestações.
Trem Para Paris parece buscar um relato aberto, quase experimental, desimpedido de qualquer prerrogativa e sempre acolhedor de elementos externos que constantemente ressignificam aquela experiência. Da percepção viciada do olhar estrangeiro (os registros fotográficos, o pau de selfie, a noção histórica americanizada) à natureza deambulante da narrativa, do escoamento dos acontecimentos nessa unidade temporal particular.
É como se Clint Eastwood, um diretor essencialmente clássico em sua sistematização narrativa até aqui, assimilasse uma representação historicamente moderna. Uma subversão temporal e espacial que remete até mesmo ao cinema de Abbas Kiarostami nessa restrição dramática que busca reagir mais ao espaço e a ambiguidade do relato do que a uma ideia de roteiro ou ações dramáticas pré-estabelecidas. O filme acontece mais a partir das suas escolhas conceituais (os não-atores, a encenação até certo ponto anti-dramática) do que de uma regulação narrativa rigorosamente estruturada.
Até mesmo o momento do ataque, quando os protagonistas imobilizam o terrorista e ajudam a salvar os passageiros, não é tratado exatamente como um ápice. É claro que a montagem até ali já dava indícios de que, apesar de tudo, existe um acontecimento norteador da existência da obra, mas quando a sequência chega, o diretor conserva esse realismo que não vai romantizar as ações, mas relatá-las como parte do destino daqueles homens.
Para além do conteúdo político que os últimos filmes de Clint interpelam – relatos questionadores e que buscam evidenciar certa ambiguidade na percepção dos atos de seus protagonistas – é bastante inspirador ver um cineasta que, aos 87 anos, continua em busca de uma renovação que engloba aspectos que vão além do temático e dialoga francamente com as diversas possibilidades que a linguagem cinematográfica tem a oferecer.