Saraceni equilibra a abordagem social com uma construção tensional desoladora.
Porto das Caixas (1962) é um filme que assimila muito bem a sua temática com sua abordagem estética. A pobreza e a desolação, presentes como um pano de fundo definidor na história, são mediadas por uma construção minimalista de espaços ausentes e contrastes sombrios. Uma composição pictórica rigorosa que contou com o essencial talento de Mário Carneiro, exímio diretor de fotografia que também dedicou parte da vida à pintura.
O filme de Paulo César Saraceni situa a pequena cidade de Porto das Caixas a partir de uma atmosfera espectral: poucos passantes, espaços inóspitos, uma constante impressão de abandono. A personagem de Irma Álvarez deambula pelo ambiente como se fosse a única pessoa com vida. Consciente do seu corpo – e invariavelmente dos seus desejos – em meio a um âmbito angustiante e vertiginoso. Oprimida pelo marido, a mulher busca, ao mesmo tempo, satisfazer certa ânsia por um mínimo contato físico como também encontrar outro homem que esteja disposto a tirá-la daquela situação, matando seu atual esposo.
Se existe uma tradição do cinema moderno onde o drama se funda pelo espaço – e aí podemos pensar de Rossellini a Antonioni -, onde é a superfície que faz primeiro brotar seus personagens e trata aqueles corpos numa dupla relação de consequência-dependência do ambiente em que se encontram, Porto das Caixas é dos exemplos mais poderosos.
É a partir de um apuro narrativo que equilibra a abordagem política com a construção tensional do périplo da protagonista que o filme faz da condição da personagem a definição do seu entorno. Por onde Irma Álvarez passa, existe uma desolação que se articula simultaneamente como contexto social deflagrado (a pobreza, a cidade esquecida, as falsas promessas dos políticos) e atmosfera psicológica atordoante, absolutamente melancólica tanto em sua ordem material como existencial.
Existe uma transparência que é tanto bruta, espontânea e mesmo documental no caminhar da personagem e em seus encontros, como estilizada, precisa ao propor muito abertamente um jogo sombrio, uma imanência tétrica que se revela a essência daquele universo.
Nas sequências na pequena casa da protagonista o tom é de um constante pesadelo claustrofóbico. Internas escurecidas onde o espaço é muito pouco preenchido, dando lugar a um jogo de corpos e luzes, de enfrentamentos entre marido e mulher que reiteram não só uma frustração física (a falta de contato, a incomunicabilidade constante), como um estranhamento afetivo, um tormento que nunca encontra a solidariedade no próximo.
A fotografia de Mário Carneiro intui muito bem essa dinâmica opressiva onde o espaço vai engolindo seus habitantes. Na cena em que Irma Álvarez se deita com o personagem de Reginaldo Faria nos trilhos do trem, em plena noite, tudo ao redor do casal é absolutamente escuro. Uma luz pontual, que na diegese da cena vem apenas de uma lamparina, recorta a figura de ambos enquanto eles se afundam na escuridão. A sequência salienta o relevo dos corpos enquanto torna todo o fundo do quadro vazio, desestabilizando uma dependência figurativa da superfície e dos entornos, ressaltando uma maleabilidade plástica ao mesmo tempo que situa os personagens em uma cena de amor sepulcral – eles se beijam como se fossem se enterrar na escuridão.
Além disso, a maneira como diretor e fotógrafo abordam as locações sempre nivela uma aproximação estética estimulante com uma representação simbólica de iconografia propícia: a fábrica em ruínas, o trem como elemento propulsor de um imaginário cinematográfico, os arredores da cidade como esse não-lugar. O filme opera, em vários sentidos, um rigor entre a evidência da realidade e uma consonância plástica propícia.
Este primeiro longa de Paulo César Saraceni é revelador dos procedimentos que o diretor iria adotar ao longo da carreira. Uma investigação cinematográfica que, à parte o seu claro interesse social e cultural pelo nosso país, concebe uma dinâmica imagética moderna à sua maneira.