Jaume Collet-Serra usa a tecnologia para aperfeiçoar seu procedimento expressivo.
Em Águas Rasas (2016), longa anterior de Jaume Collet-Serra, o diretor já dava sinais de uma abordagem gráfica mais limpa do que de costume. Ao contrário de seus thrillers labirínticos, o filme com Blake Lively colocava a atriz como ponto central em um suspense de, literalmente, mar aberto. A partir de uma dinâmica visual transparente, o CGI atuava simultaneamente como elemento contemplativo (o cenário idílico) e componente ameaçador (o tubarão, as adversidade da natureza) – assumindo o artifício como principal força propulsora da obra.
O Passageiro (2018) parte da concepção vertiginosa dos filmes anteriores do cineasta – funcionando inclusive com uma espécie de redisposição de Sem Escalas (2014) – porém, agora, dentro de uma dimensão espacial muito mais aberta e maleável.
Vítima da armação de uma mulher misteriosa, o personagem de Liam Neeson é incubido de encontrar um passageiro específico no trem que pega todos os dias. E como em Águas Rasas (2016), existe uma centralização no protagonista que vai além da simples premissa narrativa, mas integra o ator como núcleo articulador do microcosmo que o filme concebe.
MacCauley, o ex-policial vivido por Neeson, é o único elemento de fato ativo naquele ambiente. Os outros passageiros funcionam muito mais como pistas falsas, obstáculos e enigmas que ele precisa decifrar, do que exatamente cidadãos personalizados. Inclusive existe uma estereotipação de todos (o executivo esnobe, a adolescente blasé, a enfermeira latina) que reitera essa assimilação dos personagens muito mais como pano de fundo, componentes a serem resolvidos em um trajeto gamificado, do que coadjuvantes dramaticamente operacionais.
O diretor, outra vez, assume a artificialização do entorno para potencializar o percurso de infortúnios do protagonista. Ficamos vidrados na figura de Neeson como se o ator fosse uma espécie de avatar – conexão tensional da nossa imersão como espectador – que necessita encontrar uma saída, chegar até o final sem perder a vida ao mesmo tempo que faz justiça com as próprias mãos.
A experiência do filme se dá muito mais nos contratempos e nos embates dessa jornada do que em qualquer propensão dramática mais específica. Se existe uma impessoalidade na forma que o diretor caracteriza o seu meio (para além dos passageiros, o próprio trem é um ambiente bastante genérico), ela atua no sentido de pontuar Neeson como o único executor. No fim das contas tudo está submisso a MacCauley (da vida dos passageiros ao destino do trem).
Toda essa dinâmica de natureza plana onde, para além do personagem principal, tudo é nivelado em uma mesma condição de ameaça externa em um universo artificializado, cria uma flexibilidade possibilitadora. Uma maleabilidade dramática onde um indivíduo inofensivo, de uma hora para outra, se revela um homem ultra treinado; onde um suspeito, em poucos segundos, se identifica como um agente do FBI. O que potencializa o suspense dentro dessa configuração imprevisível, dessa reordenação do espaço que necessita ser repensado constantemente.
Mesmo a abordagem formal se dá a algumas liberdades que flexibilizam as possibilidades físicas do espaço e assumem o seu caráter artificial em prol dessa transparência. Na cena em que Neeson luta com um homem que carrega uma guitarra percebemos uma dupla abordagem que soa paradoxal, mas faz todo o sentido dentro do preceito versátil da obra: planos sequências em que a câmera preserva um naturalismo na sua percepção temporal e o uso de efeitos especiais que incrementam os imprevistos violentos da circunstância. Um realismo onde o falso (a trucagem virtual) é declarado como furor consequente de uma violência sinestésica.
Sem falar em toda a caracterização visual do interior dos vagões onde a câmera passeia livremente, revelando camadas e minuciosidades igualmente de aparência bastante sintética em sua concepção plástica.
O filme, a todo momento, assume aquele espaço como um dispositivo, um lugar de condições específicas em que a câmera se incorpora a um princípio de regras abrangentes, mas fundamentalmente de tom controlador, sempre subordinado aos movimentos de Neeson. É a eficiência de MacCauley que inaugura e reinagura concepções visuais antes protocolares (procedimentos comumente generalizados em grande parte do cinema de ação), agora estimulantes nas mãos do cineasta catalão.
O Passageiro (2018) confirma o caminho único que Collet-Serra passa a percorrer como diretor. Um artista interessado não só na renovação narrativa de alguns ideais do filme de gênero, mas igualmente engajado em novas possibilidades formais onde o cinema e a tecnologia atuam como um estímulo expressivo de poucos precedentes.