A subversão de um ideal romântico em A MULHER QUE INVENTOU O AMOR (1979)

Garrett articula um equilíbrio raro entre procedimento conceitual e abordagem gráfica.

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Jean Garrett ocupa um espaço muito específico no cinema brasileiro. Ainda que historicamente o diretor pertença à tradição da Boca do Lixo e da pornochanchada, o cineasta português radicado no Brasil possuía preocupações autorais e influências de cinema de gênero que iam além de tais produções. Talvez Garrett seja uma espécie de elo essencial entre a pornochanchada e o cinema de Walter Hugo Khouri: ao mesmo tempo que o erótico e o esdrúxulo entram como temáticas, existe um apreço formal e uma construção dramática de fundo psicológico sempre relevante.

Em A Mulher que Inventou o Amor (1979) não observamos apenas a virgem se transformar em uma sedenta por sexo – um caminho de fetichização típico do imaginário erótico – mas sim a desconstrução de um ideal romântico, a reordenação de funções ativas e passivas a partir da subversão da figura da mulher dentro dessa configuração.

Após se ver desiludida – sem o parceiro perfeito, sem o casamento que sempre sonhou – a personagem de Doralice vira a prostituta conhecida como “rainha dos gemidos”. Logo se torna amante de um figurão que a molda seguindo padrões de um princípio feminino elegante e de bons modos. A partir desse mote, a submissão vai aos poucos dando lugar a uma desobediência possibilitadora.

A mulher que foi talhada perante as circunstâncias (a prostituta, a outra) e sempre resignada a certos ideais impostos (o casamento, o homem ideal), busca reinventar uma definição romântica através de desígnios pessoais, de uma vontade própria que é ao mesmo tempo uma vingança perante a tipificação dessas utopias amorosas que a oprimiam, como também demanda violenta que encontra em um mote destrutivo a sua catarse plena e inconsequente.

Doralice, que agora é Tallulah – a persona elegante que a personagem aceita de uma mentora, mas oportunamente desvia seus princípios iniciais – busca o sexo não como obrigação necessária e desprazerosa como em seus tempos de prostituta, mas encontra no ato uma ferramenta de poder. Tallulah humilha seus parceiros e até paga pelo sexo, pede para os homens gemerem e fica por cima na cama.

O filme subverte toda uma ordem de atribuições. Cenas em que geralmente é o homem que demanda, que ultraja sua parceira, são invertidas, porém com o mesmo tom esdrúxulo. Tallulah recusa uma ambiguidade ao encarnar o papel masculino e faz questão de colocar os homens que encontra em uma posição de submissão.

Mesmo o galã da novela, que era apenas ideal inalcançável resumido a cenas na televisão e posters na parede, a uma relação de ordem quase alegórica em sua fabulação romantizada, se transforma agora em uma busca obsessiva da personagem. César Augusto, o maior objeto de desejo no filme, que logo descobrimos tem um caso homosexual (muito bem articulado dentro da perspectiva de desmonte dos símbolos masculinos que perpassa toda a obra) é a construção icônica que melhor representa o trajeto de corrupção de Doralice.  

O desejo pelo galã une tanto o apego físico, a transa sonhada com o símbolo sexual, como a purgação de todos os complexos: a união que representaria o sucesso da demanda máxima da personagem. E o filme, convenientemente, preserva esse desejo durante toda a jornada da protagonista. Porém o que antes era atração romantizada se transforma na gana destrutiva que ressignifica as definições amorosas. Nesse sentido, a poderosa sequência final fecha o procedimento conceitual do filme com brilhantismo: só a violência sublima o desejo, só o aniquilamento da instituição (o casamento, o símbolo masculino) liberta a mulher.

A Mulher que Inventou o Amor (1979) estabelece um equilíbrio muito raro entre o seu propósito temático e suas relações propriamente dramáticas. Do mesmo modo que o trabalho invoca uma simbologia agressiva em suas especulações carnais entre desejo e sexo (o açougueiro que tira a virgindade da protagonista, o restaurante onde todos bebem sangue), o filme articula uma dimensão de melodrama muito poderosa, de frontalidade de cenas muito objetivas em suas intenções emocionais e gráficas.

Jean Garrett não só dá vida ao estimulante roteiro de João Silvério Trevisan, mas reorganiza todo um código de gênero (da pornochanchada ao revenge film) dentro de uma dimensão autoral de intenções peculiares e claramente à frente de seu tempo.