A protagonista é o centro magnético do longa de Jaume Collet-Serra.
Café Society (2016), último filme de Woody Allen, se assume como uma espécie de fábula reminiscente de Hollywood. Mas no lugar de um gesto de reverência vigoroso a essa golden age do star system, Allen prefere a domesticação.
A fotografia de Vittorio Storaro cria o cenário ideal para uma peça de legítima veneração – ali sim a reminiscência como um mote do encanto – porém o culto à estrela, ao legado cinematográfico icônico onde o filme é situado, se limita à exploração enfadonha dos conhecimentos culturais do seu diretor: o fatídico cinema name-dropping.
Se o que falta em Café Society é, justamente, um astro que retifique o elemento memorialístico, uma presença magnética que, sejamos justos, o próprio Allen já soube conceber muito bem, curiosamente a mesma Blake Lively que no filme é só mais uma coadjuvante mal aproveitada, um potencial luminoso que tinha tudo para dar vida à alusão icônica do diretor nova-yorkino, não deixa de ser a projeção perfeita de uma definição – a seu modo bastante particular, ainda que essencialmente normativa – de um star system contemporâneo em Águas Rasas (2016), mais recente filme do catalão Jaume Collet-Serra.
Muito mais do que apontar as evidentes diferenças entre a Hollywood reminiscente de Allen e a contemporânea de Collet-Serra, Águas Rasas intui a figura de Lively não apenas como a presença essencial de uma estrela, mas como o centro magnético de toda a obra. Lively, aqui, não é só a personagem principal, não é só a mocinha que foge de uma ameaça concreta, mas sim o motif fílmico que desestabiliza toda a relação formal do longa.
Em Águas Rasas não é a personagem que se molda ao filme, é o filme que se molda a ela. E no caso de Collet-Serra, existe toda uma variação material e espacial implícita nesse movimento.
Se formos pensar na própria relação de Jaume Collet-Serra com o cinema de gênero, existe, quase sempre, uma associação implícita entre objeto e forma que acaba dinamizando tanto um elemento de ação direta (o gênero se define muito bem através de um fluxo narrativo claro dentro dos seus moldes, seja a ação ou terror), como uma espécie de desestabilização essencial que intui a natureza desse objeto, que reverencia essa natureza.
Desde A Casa de Cera (2005) é possível reconhecer essa dialética formal na maneira como o diretor lida com o artifício e o espaço. Seja na sua relação quase alegórica com a tradição do slasher e do horror em si, seja na renovação francamente pop daquele meio, A Casa de Cera se posiciona, a todo momento, como um cenário moldável desse projeto de veneração. A narrativa se situa, literalmente, dentro de uma cidade-alegoria, integrando e desintegrando-se com ela (o museu de cera ruindo, a iconografia de um tempo que derrete) ao mesmo tempo que reconhece a sua vocação contemporânea: a presença simbólica de Paris Hilton (não uma atriz, simplesmente um ícone) e a excentricidade do seu plot e das suas resoluções (são tempos histriônicos, afinal).
Ao mesmo tempo que o cinema de gênero de Jaume Collet-Serra parte de referências nada mais do que diretas (o slasher, o tubarão), é também um cinema que sente a necessidade de engajar toda uma hiperconstrução nessa renovação.
Filmes como Noite Sem Fim (2015) e Desconhecido (2012) já reforçavam, em suas próprias premissas narrativas, esse hiperformalismo – o personagem-motivo preso dentro de uma relação labiríntica em um espaço físico altamente estetizado –, Águas Rasas, por sua vez, é a obra que mais tem sucesso nesse processo elaborativo justamente porque se debruça sobre uma dinâmica bastante minimalista e, em vários pontos, bastante didática nesse método ultra-centralizador; seja em relação a um movimento de artificialização do seu espaço (a praia como estúdio virtual moldável), como em seu processo de monopolização da personagem (Blake Lively como o astro central dominante).
Se antes era Liam Neeson que lutava para sobreviver em um mundo de cores contrastadas e que, ainda, se valia muito bem de seus coadjuvantes, agora é Blake Lively, num universo cromaticamente muito mais aberto, tendo apenas a si mesma contra uma natureza ameaçadora.
Ou seja, se o diretor está interessado em reiterar essa dinâmica centralizadora do cinema de gênero, uma lógica onde a natureza da obra influencia diretamente na sua concepção espacial e formal, ele o faz através de um claro processo de reverência. Não é à toa que Águas Rasas dispõe de uma harmonização iconográfica certeira: ao mesmo tempo que recruta um arsenal de efeitos especiais e CGI, coloca em jogo, também, uma dinâmica bastante elementar do suspense e do survival film. Sem falar, é claro, no próprio suporte evocativo spielberguiano que a figura do tubarão já remete.
A estrutura do filme expõe a metodologia dessa dicotomia inventiva entre construção do espaço e centralização da personagem. O filme se dá ao luxo de um primeiro ato basicamente contemplativo, tanto em relação à figura de Blake Lively como ao espaço em que ela se encontra. É uma câmera que busca, essencialmente, a relação de um corpo convergindo com seu meio, que recruta todo um arsenal de pós-produção e slow motion, que, se por um lado parte de uma lógica francamente publicitária (a gênese televisiva dos vídeos de surf), por outro, de fato encara uma materialidade específica, fazendo de uma simples cena de mergulho por baixo de uma onda uma extravagância visual única.
Em seu primeiro longa filmado em digital, Collet-Serra usa e abusa das possibilidades flexíveis do formato. Desde o começo estamos diante de um filme materialmente hipersensível, que, através dessa abordagem amplamente virtual do seu meio, tem muito prazer em adiar os seus gestos, em remodelar toda a sua física contemplativa em prol do artifício da imagem.
A relação material de Águas Rasas é essencialmente tecnológica. A localização do espaço depende a todo momento dos seus efeitos de cor, de seus planos milimetricamente simétricos, e mesmo a contextualização dramática faz questão de usar e abusar dos gadgets à mão (as fotos no celular; a conversa em vídeo com o pai).
A natureza, em Águas Rasas, é um elemento de artifício. E justamente por ter à mão esse arsenal ultra-controlador, essa espécie de simulacro de survival film, faz questão de moldar toda a sua dinâmica formal em razão dessa personagem-motivo, da atriz como astro associado a elementos espaciais que orbitam ao seu redor, que estão ali submissos a essa tensão laboratorial. O primeiro ataque do tubarão já parte de uma abordagem mais elaborada do que exatamente explícita, pois a consciência da investida do animal se dá através de um movimento essencialmente pictórico: a cor da água vai aos poucos se transformando em vermelho. Até nisso o filme recorre a uma mediação, a um ato que evoca um artifício sensível.
Quando a personagem se vê ilhada, à mercê do tubarão, a dinâmica geométrica do filme se remodela ainda mais. O que antes era uma abordagem plana, se torna circular; o que antes focava na amplidão, se fixa na personagem como ponto gravitacional constante.
Águas Rasas vira esse jogo no qual a ameaça passa a ser a esse ponto irremovível representado pela atriz. Isso vai se tornando cada vez mais gradativo, cada vez mais ilustrativo. Assim como a simetria do filme começa a ir por um caminho circular quando a personagem de Lively se refugia nas pedras, aderir a essa lógica gravitacional mais explicitamente, quando ela foge para a boia de sinalização isso fica ainda mais evidente, já que ali, justamente no ápice dramático, existe a desestabilização desse ponto tensional.
É um confronto que, sem coadjuvantes, alicia todo um jogo de forças físicas muito elementar entre Blake, a estrela, o astro principal desta galáxia artificial, e o tubarão, a ameaça externa a essa dinâmica. Esse jogo lida não só com a natureza dominante da atriz-personagem como o único corpo possível naquele espaço, mas usa desse processo para tonificar a sua própria identidade.
Nada mais norte-americano do que reiterar uma identidade através da ameaça externa. Serge Daney, em texto sobre Apocalipse Now (1979), afirma que, ideologicamente, o objetivo desses filmes de ameaça (de Alien a O Exorcista) é tornar os americanos ainda mais americanos, é fazê-los exorcizar um outro que os assombra e que os habita.
Uma espécie de catarse necessária que, em Águas Rasas, tem vínculos tanto com o luto da personagem, como com quem ela já é. A própria praia é o representante fundamental da mãe ausente, a motivação dramática da viagem que, ao se transformar nessa ameaça mortal, obriga a protagonista a assumir papéis: a estudante de medicina que trata o próprio corpo, a norte-americana que se vale dos próprios esforços para sobreviver.
Se Blake é o centro, apenas Blake sobrevive. Os outros dois surfistas, não-americanos, são devidamente devorados pela ameaça, anulados por essa identidade normativa (a norte-americana, a loira, a estrela de cinema). A reiteração da identidade se dá não só através do extermínio da ameaça, mas dos outros que não são comuns a ela.
O gênero é um catalisador mais do que apropriado nessa mediação de identidade entre um diretor estrangeiro e seus filmes claramente norte-americanos. A relação de reverência no cinema de Collet-Serra parece atingir um mote de patrulhamento: tornar, através desse culto alegórico, desse elogio ao artifício, o cinema americano ainda mais americano.
Enquanto Woody Allen, inegavelmente um dos diretores mais norte-americano dos norte-americanos, hoje, tem problemas em simplesmente mediar a própria cultura (o espertalhão preso às definições intelectuais de butique), Collet-Serra encontra na hiperconstrução do gênero uma energia renovadora que reforça não só alguns de seus ideais primários, como também enfatiza a sua fundamental relação com o protagonista: o astro de cinema.
Devido a toda essa centralização, a esses motifs simbólicos, o extermínio do outro – seja em Águas Rasas, seja em qualquer filme norte-americano de ameaça – deve vir, literalmente, pelas próprias mãos da personagem. Por mais impensável que seja, a estrela de cinema, desarmada, indefesa, precisa ser a única responsável por esse extermínio, precisa usar dos seus próprios meios (sua formação em medicina, sua força de vontade via motivação do luto, sua identidade norte-americana) para salvar a pele. E assim será. Sem ajuda, sem armas, sem coadjuvantes. Apenas com aquilo que o seu diretor, acima de tudo, mais reverencia: o artifício cinematográfico.
A partir de toda essa estrutura centralizadora, Águas Rasas talvez teria apenas dois finais possíveis: ou a personagem morre, vítima dos próprios atos, se desintegrando dentro da própria órbita; ou é salva pelas próprias mãos, preservando o seu domínio de astro principal sobre aquele espaço, conservando uma lógica do star system, de comoção narrativa familiar e reconhecível. O astro é independente, se vale de seus próprios meios: ou fracassa, ou salva a própria vida com o pouco, às vezes o quase nada, à mão. A redenção é uma jornada individual.
É sempre uma alegria se deparar com um diretor que sabe partir de uma dinâmica muito elementar, de gêneros muito elementares, não para simplesmente remoer um componente reminiscente da cultura do blockbuster, mas para potencializar os seus meios e reforçar seus ideais dramáticos.
Guardadas as devidas extravagâncias (outra vez, são tempos histriônicos), Águas Rasas preserva a inocência como uma unidade legítima do filme de estúdio. A sedução pela imagem como um mote lícito, integrado à estrutura e lógica dramática da obra. A estrela, aqui, o astro principal, de fato governa a sua galáxia com exatidão. Basta sentar e aproveitar o espetáculo.
Publicado originalmente na Revista Cinética em novembro de 2016.