JOIAS BRUTAS (2019): Entre a banalidade e o sagrado

Irmãos Safdie realizam um filme sobre o aspecto sagrado do acaso.

Joias Brutas (2019) tem uma proposta arriscada. O filme mantém, em toda a sua duração, uma mesma frequência alucinada que não apresenta muitas variações. Tanto a abordagem formal dos diretores como a performance de Adam Sandler possuem uma descontinuidade que é caótica, mas é também constante. Howard passa o filme inteiro com o mesmo temperamento. Os irmãos Safdie estão sempre atrás de estímulos visuais e sonoros. Ou seja: mesmo dentro desse princípio caótico, existe uma previsibilidade.

O elemento que faz o filme progredir não é, exatamente, essa desordem, mas a maneira como os cineastas tiram forças peculiares – forças místicas, em última análise – de elementos banais que constituem essa experiência caótica. A forma como cada sequência vai recompondo toda a estrutura do longa a partir de uma ideia comum – a ambiguidade entre a banalidade e o sagrado – traz uma inegável unidade ao trabalho.

Se por um lado a instabilidade dos acontecimentos do filme parece refletir a instabilidade de um ideal capitalista. Um busca por mais dinheiro que é também uma busca pela sobrevivência – a própria construção claustrofóbica dos espaços de riqueza (a joalheria fechada, o escritório de Howard, a boate, os apartamentos de luxo escuros e apertados) dá a impressão de ambientes de sobrevivência, como se fossem bunkers. Por outro, a presença da pedra – de algum modo o símbolo bruto e essencial do capitalismo, a sua essência ainda não lapidada – seria o único objeto que traz uma certa ordem mística para quem a detém. Um senso de vitalidade contínua. O objeto de desejo ideal que motiva todo o caos.

O que gera o movimento, o crescimento e a desgraça é a própria busca desmedida por esse ideal. O filme serve como um registro esquizofrênico dessa jornada, desse “livre mercado da sobrevivência”. Essa talvez seja uma das chaves mais interessantes de Joias Brutas. A forma como, através de uma abordagem relativamente crua (a câmera instável, o trato realista com os espaços, a atmosfera evidentemente urbana), os diretores articulam elementos que beiram o fantasioso.

Por meio de uma combinação de identidades étnicas, valores culturais, dogmas religiosos e até superstição envolvendo esportes, o filme propõe um amálgama esotérico que coordena – ou descoordena, não faz diferença – a imprevisibilidade dos acontecimentos.

O mundo é um lugar caótico justamente por abrigar todas essas energias. As montagens envolvendo cores abstratas reforçam essa ideia. A primeira, que abre o filme, é das mais significativas: um ideal místico que vai do que é mais sagrado e, teoricamente, valorizado (a joia misteriosa) ao que é mais mais sujo e científico (uma colonoscopia em Adam Sandler).

O filme constantemente joga com esses dois valores – o banal e o sagrado – em seus acontecimentos. Além do evidente poder da pedra (o objeto mais sagrado justamente porque é, também, o mais valioso), não existe uma disposição específica desses valores. Mesmo que o mundo, em todos os seus contextos, lide com esses símbolos (até mesmo a criança na peça representa um milagre ao cuspir ouro), não existe um caminho correto para a salvação.

Quando Howard parece certo do seu destino e faz a aposta final vencedora, atingindo assim uma possível redenção que finalmente assimila o aspecto sagrado (a natureza aleatória dos detalhes da aposta, a confiança na pedra) com o ideal capitalista (o prêmio em dinheiro), ele é morto com um tiro na cabeça por um oportunamente imprevisível agente do caos.

Carl Jung já disse que “Deus é tudo aquilo que acontece e eu não posso controlar”. Uma definição que, definitivamente, resume bem essa constante ambiguidade de Joias Brutas.

Ao construir toda a sua dramaturgia e sua abordagem audiovisual sobre ideias de aleatoriedade e esoterismo, os cineastas articulam uma das experiências cinematográficas mais intensas e misteriosas da década. Um filme que, como poucos, assimila com riqueza a dúvida eterna sobre o determinismo das situações da vida.