A ressignificação do olhar nos filmes de David Perlov, Chris Marker e Jonas Mekas

Diretores fazem da banalidade um elemento de comoção.

Nos primeiros planos de Diário (1983), de David Perlov, vemos imagens de uma rua. Algumas pessoas nas calçadas, alguns carros em um cruzamento. Logo notamos que essas imagens estão sendo captadas de uma janela. Ouvimos, então, a voz de David Perlov. Em uma espécie de confissão, o diretor revela que não sabe mais o que filmar, não se sente mais atraído por nenhum gênero cinematográfico; seja o documentário, seja a ficção.

Perlov confessa que, a partir daquele momento, daquelas primeiras imagens de sua janela, decidiu realizar um diário. Um projeto sem conceitos ou apelos pré estabelecidos. Apenas filmar, instintivamente, seu cotidiano, aonde quer que ele se encontre.

Diário (1983) – David Perlov

A primeira imagem de Sem Sol (1983) de Chris Marker, é a de três crianças de mãos dadas em uma estrada na Islândia olhando diretamente para a câmera. Esse primeiro plano de Marker está protegido do resto de filme, ele se encontra guardado entre duas telas pretas. Segundo a voz que ouvimos, esta é a “imagem da felicidade”. Essa voz, que permeia por toda a obra, lê uma carta escrita pela pessoa que registrou essas imagens, no caso Sandor Krasna, o alter-ego de Marker.

A carta diz:

Ele me disse que aquela era a imagem da felicidade e que ele tentou juntá-la a várias outras mas nunca conseguiu. Ele me escreveu: Um dia eu irei colocá-la sozinha no começo de um filme com uma tela preta, se eles não enxergarem a felicidade, ao menos eles enxergarão o preto.

Quando o lituano Jonas Mekas e seu irmão Adolfos Mekas chegaram em Nova York, após um périplo europeu forçado pela Segunda Guerra, a primeira coisa que fizeram foi alugar uma bolex 16mm. Durante os anos seguintes, Jonas filmava tudo o que se passava na vida dele e do irmão, do mais banal ao mais significante, de experimentos com a câmera à possíveis histórias de ficção. Nascia aí um instinto do qual Jonas Mekas nunca mais se livrou, pelo contrário, foi tornando parte de sua natureza. Pelo menos é assim que ele mesmo descreve a ação de filmar em certo trecho do seu filme Lost, Lost, Lost (1976).

Esses três artistas, o brasileiro David Perlov, o lituano Jonas Mekas e o francês Chris Marker, tem um interesse em comum: a banalidade. Mas não um simples interesse, eles vão além, eles acreditam em uma imagem absoluta. Aquela que vai definir um trajeto, conceitualizar um percurso e que por si só, pelo simples fato de existir – e ser filmada – , irá refletir um certo estado. O estado do mundo? O estado deles próprios?

 Lost, Lost, Lost (1976) – Jonas Mekas

David Perlov começa exatamente pelo lugar em que se encontra no momento de seu primeiro insight: a janela de seu apartamento. Depois da janela, ela vira a câmera para dentro. Vemos sua esposa, vemos sua sala, vemos suas filhas. Logo sentimos um saudosismo nas impressões de Perlov. Uma insatisfação com sua cidade, no caso Tel Avi, com seu país, com a representação de certos ideais e mesmo com o mundo.  De tempos em tempos ele relembra sua infância em Belo Horizonte e cita carinhosamente sua babá, Dona Guiomar, nome esse que, ao longo das seis horas de projeção, vai se tornado uma entidade do passado de Perlov.

Jonas Mekas não se considera um “filmaker”, mas se auto intitula um “filmer”. Ou seja, segundo o próprio Mekas, não existe uma direção pré-pensada em seus trabalhos. Ele apenas filma, usando sua natureza e seu instinto para depois, no momento da montagem, reviver suas memórias. Ordenar ou desordenar, de acordo com a ordem poética dos acontecimentos, seus fragmentos de vida.

Claro que a sensibilidade do diretor no momento de suas criações gera uma delicadeza natural em seus planos, essa “falta de direção” que Mekas descreve nada mais é do que um certo naturalismo e intimidade com sua câmera, que após um belo tempo de montagem e “gestação”, dá origem a um acabamento conceitual.

Diário (1983) – David Perlov

Mas qual é esse conceito? Em Sem Sol, a carta de Sandor Krasna em certo momento diz:

Minhas constantes idas e vindas não são uma busca por contrastes, são uma jornada em busca dos dois pólos extremos da sobrevivência.

A atração de Marker pelo remoto, seja ela política ou não, parte sempre de uma inquietação. Um sentimento quase obsessivo de tentar compreender o presente e o passado de certas culturas. Aquilo que irá formar a “memória do futuro”, os rastros da nova civilização, aquilo que é o ensaio de um apocalipse multi-étnico.

David Perlov, assim como Marker, acredita no deslocamento como forma de conhecimento e interação. Compartilhando dessa inquietude, Perlov sempre arruma alguma desculpa para estar em constantes viagens. Seja para encontrar amigos ao redor do mundo, seja para o apartamento de sua filha em Paris.

E é nesse tempo em Paris que reside seu principal momento de desolação. Com a maior parte do tempo livre, sozinho no apartamento da filha, tendo como companheiro apenas sua câmera, Perlov entra em um certo estado de observação solitária constante. O que o leva a filmar desde a inocência de uma criança portuguesa, filha do porteiro do prédio em que ele se encontra, até locais tétricos na periferia de Paris, em uma sequência muito melancólica aonde intuimos não apenas que é essa inquietude que faz Perlov se perder, seja na cidade, seja subjetivamente, mas que ele mesmo, de certa forma, deseja estar perdido.

Se a inquietação gera a marginalidade, o que gera a inquietação? Estes homens, acima de tudo, amam o que filmam. Eles dependem disso para sobreviver, não existe escolha.

Lost, Lost, Lost (1976) – Jonas Mekas

O afeto não é uma questão de mero conceito ou linguagem, mas um modo de vida. Um instinto que precisa ser constantemente confessado, seja diretamente como na voz off de Jonas Mekas em “Lost, Lost, Lost”, quando ele declama seu triste estado de estrangeiro, seja indiretamente como nas observações mais subjetivas de  Marker e Perlov. Consequentemente essa parece ser uma natureza que gera uma espécie de filme-híbrido, cine-diários sem uma pátria definida. Marker entre a África e o Japão, Perlov entre Israel, Brasil e Paris, e Mekas em Nova York tentando entender aquela cidade através de sua câmera. Um único lugar não é o suficiente para olhar, é precisa expandir territórios, afetivos e subjetivos. Estudar o mundo através do banal.

Estes diários postulam um tipo de manifesto estético muito particular. Eles recusam a categoria do simples documentário. Não querem apenas mostrar a realidade, querem fazer parte dela, chorar e vibrar com ela, traçar pensamentos, brincar com suas memórias e tradições. A realidade não como mero pano de fundo para um assunto, mas sim para uma vida, impressões, alegrias e tristezas.

Estéticas do afeto, seja este afeto destinado a quem for. Uma carta, um diário, uma tentativa de compreensão. O espectador, esse sim, ganha de presente o sentimento do mundo visto por uma lente-olho de um cinegrafista da vida, de um fluxo em constante movimento. Não é a linguagem, seja documental, seja confessional, seja o que for, que gera o afeto, mas sim a genealogia de um sentimento em seu estado mais bruto e íntimo, que gera a linguagem, uma linguagem inédita, intensa e muito bem vinda.

Sem Sol (1983) – Chris Marker

E ao final dessa jornada, aonde estão todos eles? O que mudou desde o começo? Perlov está em Belo Horizonte, está em São Paulo, está no Brasil. Aqui aonde tudo nasceu. Sua câmera não tem uma direção definida, ela simplesmente permanece virada para frente, em uma rua qualquer do país, com pessoas passando e olhando para sua lente. Mas que país é esse? Não importa mais, podemos estar em Israel, no Brasil ou na França. Perlov simplesmente diz, em uma espécie de últimas palavras de uma longa confissão, um único nome: Dona Guiomar. A babá de Belo Horizonte, entidade do seu passado, depois de viajar pelo mundo, define um trajeto presente.

Jonas Mekas está perdido entre a poesia de sua imagens e a poesia de seus haikais primitivos. Ele filma o céu e repete: the sky, the sky, the sky. Ele filma o vento e novamente repete: the wind, the wind, the wind. Mekas repete, verbalmente e visualmente, da maneira insistente e espontânea, os elementos brutos de sua paisagem, para nunca se quer citar aquele que, mesmo assim, ressoa dentro de nós durante toda a projeção: Lost, Lost, Lost. Perdido nesse tempo, nesse país desconhecido e, consequentemente, em todo esse material bruto que é a vida.

E Chris Marker? Marker está no Japão, está na África, está dentro de um navio a caminho de Hokkaido, parado em um banco de praça observando uma geração que aos poucos começa a se definir. A voz pergunta: Haverá uma última carta?

Não sabemos se alguma coisa mudou, se o objetivo do começo foi alcançado, se é que existia algum objetivo definido. Sabemos apenas que esses filmes não se encerram em si, mas permanecem vivos como questionamentos de olhar. Se a nossa alienação contemporânea quase que constante não nos permite “fazer poesia” simplesmente ao observar três crianças em uma estrada, ou alguns carros através de uma janela, ou qualquer banalidade que se faça presente à nossa frente, esse filmes nos mostram a direção e nos ajudam simplesmente a olhar.

Publicado originalmente na Revista Rua em maio de 2009.